terça-feira, 8 de maio de 2018

Fluxo-de-(in)consciência (palavras para Galeano)


Aquele medo de entrar no mar. Água tão fria que nem o sol de janeiro esquenta. O medo semicerrando os olhos diante da imensidão líquida de luz - “pai, me ensina a ver o mar?” pergunta Diego a Santiago numas linhas do Eduardo – o medo roçando o céu da boca, um vento salso secando os lábios. É tanta a água e tão pequeno eu, tão miúdo ainda, malgrado carregue um metro e oitenta e dois de corpo e alma não lavada. Eu. O medo. O mar. Os mares nunca dantes navegados, os mares que não mais chegarei a conhecer, nenhum dos meus caminhos me leva ao Adriático, talvez só na infância em que eu acreditava poder chegar à Grécia de Brasília amarela. Criança é tão pequena que não tem espaço pra medo, o medo não cabe nos bracinhos e pernas ainda flexíveis e carentes de aventura. A gente cresce, pois. E então cada osso, cada poro se preenche de medo, até desconfio que um corpo adulto não seja nada além do resultado do inchaço causado pelo medo. O medo é nosso primeiro alimento, é a resposta pro nosso primeiro gesto, el abrazo – Eduardo, sinto tanta saudade de ti, mesmo sem te ter conhecido, mesmo sem ter lido As veias abertas por inteiro


(porque aprendi contigo que era preciso aprender a enxergar o mar.)


O medo foi meu primeiro remédio, a primeira política de prevenção às dores e doenças. O medo encheu meus passos de cautela, encheu minha boca de palavras, pílulas medicinais que tentam sanar os anseios, recuperar o bem-estar esvaído pelos anos – tão longe do mar eu li, Eduardo, eu ouvi suas palavras ao pousar em Potosí. Diante do mar agora eu tenho medo, mas carrego comigo as pílulas que me deu, e você nunca saberá que me as deu porque já está morto, porque seu abraço derradeiro me foi dado em uma canção da Calle 13.


(Entrei no mar, Eduardo. Não quis fechar o coração. Na verdade, deixei-o aberto de propósito)


Ao léu. Assim o corpo fica na água depois do susto e dos espasmos em contato com o frio. Assim as palavras a quem dedico, não só a ti, Eduardo, não só ao mar. Esqueço por um instante do medo, deixo-o na areia, sou eu finalmente e só, inteiro, a encharcar-me. Água lavando a alma. Porque o corpo carrega na pele a ideia de que não mereço o mar, de que o mar é pras crianças e pros aventureiros – que são os mesmos afinal. Mas o mar, ele mesmo, não questiona ninguém, se dá a todos. O mar-memória tarkovskiniano no fundo nos trata a todos como igual


(fui à União Soviética agora, mas ainda por teus passos, Eduardo).


Porque carrego na pele a ideia de que não mereço o mar. Mas não, porque aprendo a olhar pouco a pouco, porque também o medo me deixou por um momento e ficou a fitar-me da areia, mas não, o mar não pergunta, o mar não afirma, o mar é. Há mar (vou ceder à tentação dos clichês porque já o medo não me alcança aqui, e dou-me completo ao ridículo.) Mergulho, Eduardo, e da pele vão saindo os meus assombros, boiam na água como algas mortas, como os ramos de flores que o mar devolve à terra. Serei eu agora a oferenda pro meu futuro. É de entrega, e não de medo, a paina que enche o novo corpo. De agora em diante deixarei perder-me pelo mar, Eduardo - e isso aprendo com seu irmão de língua. Porque agora carrego a imensidão que em muito me escapa.


O medo, alguma onda levou - deixei-o tão à beira da água… O sol estanca o sangue e a água do meu corpo deitado na areia. Do coração verte o novo velho líquido. Pele e alma vão quarando, quarando, quarando, enquanto longe o medo vai. Oxalá não volte, ou que se perca em alguma plaga esquecida pelo tempo.

Amém.

sexta-feira, 30 de março de 2018

Esboços para uma personagem melancólica

Os membros inferiores:

as patas seriam
de cãozinho maltês
são apenas duas, um par
de pernas tortas
coxas que não valem
o frango de domingo
do cão mesmo só as patas
e toda a maltesia
como um certo João
da família Mau Tempo.


O tronco:

o peito em carne morta
há quanto lhe arrancaram
os pêlos que aqueciam
o busto de bisão
o dorso em contraste
ainda cheio de plumas
penas cinzas de batuíra
manoelzinho-da-croa sem par


Os membros superiores:

tem patas e tem asas
e garras aparadas
nas pedras de algum rochedo mitológico aprendeu o desmolar, o vôo um eterno ensaio de aventura num livro infantojuvenil escrito quiçá por uma criança que não entendia dos recursos narrativos - e por isso ousava feliz em prosa&verso
do manoelzinho nem a cor
um vendaval vermelho
das asas que batiam
e mãos de garra amolada
que não botam medo em ninguém.


A cabeça:

não chega a ser uma juba
não é senão felino adocicado
tomando leite demais
carne de menos
os caninos pequeninos
maxilar mal acostumado
à crueza do alimento
ouvidos que não ouvem em surdina
carecem sempre de palavra
em alta voz, ALTA VOZ
o nariz um bico que não cheira
mas os olhos são de águia
de águas cheios, não só de lágrimas
não só de rios, Rios, risos
não só de mares, amares, amores
não só dos horizontes
o olho esquerdo um argonauta
cosmonauta o direito, soviético.


A moldura:

a jaula está aberta
ou gaiola, como queiram chamar
é prisão esquecida
o circo já se foi
deixou ali, no terreno baldio,
o curioso animal,
- de que espécie -
sem graça agora.
Partir? Ficar?
Os rastros de carroça
de carro e caminhão
questionam em silêncio
Seguir? No canto superior
há uma estrada sem sinais
uma rua que leva para


A parede

branca, recém pintada
só um quadro pendurado
um quadro, para que serve?
Arte, para que me serve
pergunto eu em voz alta
na galeria vazia do museu.

sábado, 5 de agosto de 2017

Resto

Ficou
daquela manhã sem cor
a última dança do teu
corpo sobre o meu
a saliva escorreu fresca
como o gozo nosso
derradeiro gozo quente
no pelo, na pele já azeda
a saliva escorreu fresca
era uma tarde amarela
quando a paixão chegou
teu corpo dançava em mim
- dizem que fugi
 por te querer demais -
o sumo de tuas nádegas
me engolia
a seiva um jato rápido
as veias abertas
(latinos somos, cariño)
uma mancha roxa na noite
uma luz vermelha na cabine
apertada, o suor brilhava
em tuas costas, em meu peito
uma roupa íntima de atleta
força dança esforço um vaievem
cansa a lembrança grudada
a saliva escorreu fresca
naquela manhã sem cor
o gosto da pele já azeda
prenúncio da eiva sobre a cama
o dia sem cor cheirava a
despedida e eu um olho
apenas e um ouvido.

domingo, 23 de julho de 2017

O medo

Em verdade temos medo.
Nascemos escuro.
As existências são poucas:
Carteiro, ditador, soldado.
Nosso destino, incompleto.

Carlos Drummond de Andrade





O medo encolheu a cidade. Estreitou as ruas. Alojou-se em todos os rostos estranhos, forrando-os de uma familiaridade inquietante. Passou a habitar as esquinas, os bares, as salas vazias de cinema, os eventos esporádicos. Impregnou a pele. Está no vento, nas palavras e no silêncio. Vai a parques, shows, manifestações. Ri de nossos anseios. Engorda com o vacilo dos passos errantes. O medo entrou nas casas e pintou as paredes. Assentou-se sobre os móveis como poeira. Ouvimos o seu passear pelos canos da hidráulica e elétrica. Nas roupas do varal, vemos o medo espreguiçando seus tentáculos. Não precisa mais do escuro: revela-se à luz no jantar, ao sol do amanhecer que entra pela janela embaçada. Escorre na água do chuveiro. As roupas no armário são escolhidas pelo medo. As meias e cuecas, o gorro e a boina, o medo esteriliza. Irmanados, sentimos o medo sentado à mesa. Come do nosso prato, deixa-nos o resto. E fraquejamos. Emagrecemos. Cansados, pousamos a cabeça sobre o travesseiro e o medo está lá, deitado ao lado, um corpo ausente que vela o nosso sono. Encobre os sonhos que não lembraremos quando acordar. Já não nos seca, o medo. Ao contrário, nos enxarca de suor, da água que flui de um duto estourado na avenida. Já não nos paralisa: caminha conosco, um amigo velho. Na memória, o medo deslizou sub-reptício e pôs seus ovos. Eclodiu em todas as lembranças plantadas. Nadou nos rios de histórias passadas e alcançou os desejos que voavam distraídos. O medo transmutou-se em som de pássaro, em mormaço, em cachaça, em fumaça de palo santo. O medo, um convite para dança. Eu não danço. Mas arrisco.

domingo, 2 de julho de 2017

Aguar o tempo

O silêncio não é céu azul em manhã seca de inverno.
O silêncio é nuvem branca.
O silêncio úmido vaga alheio aos que debaixo olham.

E olhamos.

Com os mesmos olhos imaturos da criança, olhamos.
A gente vê o algodão branco e desenha neles.
Como em folhas - nuvenspelho.

Queira o bom deus que o Climatempo esteja certo e caia a chuva no fim da tarde.

sábado, 13 de maio de 2017

Teu silêncio

"Estou absolutamente cansado de literatura; só a mudez me faz companhia. Se ainda escrevo é porque nada mais tenho a fazer no mundo enquanto espero a morte. A procura da palavra no escuro."
In: A hora da estrela -  Clarice Lispector



O eco que me rouba a madrugada. A voz nas cavernas da memória. O abraço que me prende à cama. O vazio da cama. O murmúrio do chuveiro. O azulejo frio. A roupa que me veste. O sapato amarelo que me guia. Bate como fome. Como a falta de fome. Como o amargo do café.

Acompanha-me como sombra. A canção que se repete. Um refrão clichê. Um vagão cheio de ninguém. O peso a menos na balança. Um peso a menos na carteira. Duas notas de cinquenta. O excesso de horas vadias. Anda como quem esqueceu pra onde vai. Corre nas aulas e nas salas de cinema.

O meu grito. A palavra que me corta. Que me sobe à garganta. A prosa mal escrita. O verso que não sai. Um poema de João Cabral. O Gigante Adamastor. A solidão de terno azul. O estalo do gatilho. Perfura as noites e os dias e os meses. Incansável. Arrasta-se como lesma. O rastro de gosma da lesma. A busca. A espera. O vácuo.

Uma resposta.