Aquele
medo de entrar no mar. Água tão fria que nem o sol de janeiro
esquenta. O medo semicerrando os olhos diante da imensidão líquida
de luz - “pai, me ensina a ver o mar?” pergunta Diego a Santiago
numas linhas do Eduardo – o medo roçando o céu da boca, um vento
salso secando os lábios. É tanta a água e tão pequeno eu, tão
miúdo ainda, malgrado carregue um metro e oitenta e dois de corpo e
alma não lavada. Eu. O medo. O mar. Os mares nunca dantes navegados,
os mares que não mais chegarei a conhecer, nenhum dos meus caminhos
me leva ao Adriático, talvez só na infância em que eu acreditava
poder chegar à Grécia de Brasília amarela. Criança é tão
pequena que não tem espaço pra medo, o medo não cabe nos bracinhos
e pernas ainda flexíveis e carentes de aventura. A gente cresce,
pois. E então cada osso, cada poro se preenche de medo, até
desconfio que um corpo adulto não seja nada além do resultado do
inchaço causado pelo medo. O medo é nosso primeiro alimento, é a
resposta pro nosso primeiro gesto, el abrazo – Eduardo,
sinto tanta saudade de ti, mesmo sem te ter conhecido, mesmo sem ter
lido As veias abertas por inteiro
(porque
aprendi contigo que era preciso aprender a enxergar o mar.)
O
medo foi meu primeiro remédio, a primeira política de prevenção
às dores e doenças. O medo encheu meus passos de cautela, encheu
minha boca de palavras, pílulas medicinais que tentam sanar os
anseios, recuperar o bem-estar esvaído pelos anos – tão longe do
mar eu li, Eduardo, eu ouvi suas palavras ao pousar em Potosí.
Diante do mar agora eu tenho medo, mas carrego comigo as pílulas que
me deu, e você nunca saberá que me as deu porque já está morto,
porque seu abraço derradeiro me foi dado em uma canção da Calle
13.
(Entrei
no mar, Eduardo. Não quis fechar o coração. Na verdade, deixei-o
aberto de propósito)
Ao
léu. Assim o corpo fica na água depois do susto e dos espasmos em
contato com o frio. Assim as palavras a quem dedico, não só a ti,
Eduardo, não só ao mar. Esqueço por um instante do medo, deixo-o
na areia, sou eu finalmente e só, inteiro, a encharcar-me. Água
lavando a alma. Porque o corpo carrega na pele a ideia de que não
mereço o mar, de que o mar é pras crianças e pros aventureiros –
que são os mesmos afinal. Mas o mar, ele mesmo, não questiona
ninguém, se dá a todos. O mar-memória tarkovskiniano no fundo nos
trata a todos como igual
(fui
à União Soviética agora, mas ainda por teus passos, Eduardo).
Porque
carrego na pele a ideia de que não mereço o mar. Mas não, porque
aprendo a olhar pouco a pouco, porque também o medo me deixou por um
momento e ficou a fitar-me da areia, mas não, o mar não pergunta, o
mar não afirma, o mar é. Há mar (vou ceder à tentação dos
clichês porque já o medo não me alcança aqui, e dou-me completo
ao ridículo.) Mergulho, Eduardo, e da pele vão saindo os meus
assombros, boiam na água como algas mortas, como os ramos de flores
que o mar devolve à terra. Serei eu agora a oferenda pro meu futuro.
É de entrega, e não de medo, a paina que enche o novo corpo. De
agora em diante deixarei perder-me pelo mar, Eduardo - e isso aprendo
com seu irmão de língua. Porque agora carrego a imensidão que em
muito me escapa.
O
medo, alguma onda levou - deixei-o tão à beira da água… O sol
estanca o sangue e a água do meu corpo deitado na areia. Do coração
verte o novo velho líquido. Pele e alma vão quarando, quarando,
quarando, enquanto longe o medo vai. Oxalá não volte, ou que se
perca em alguma plaga esquecida pelo tempo.
Amém.
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