quinta-feira, 30 de maio de 2013

Poeminha da lua e da saudade

Hoje a saudade bateu à porta com todos os seus clichés. Veio passar um tempo, dois talvez. Trouxe a lua que não vivi ontem à noite, minguada, à espera do mês que vem.

Conversamos, a saudade, a lua e eu,
enquanto os clichés corriam pela casa, sem se darem pelo que falávamos.

A saudade, carinhosa, resolveu abraçar-me,
enquanto a lua chorava seu fim iminente.

Deixei-me tombar nos braços da saudade. A lua, então, veio molhar meus pés. 
Éramos, nas frações dos segundos que passavam, um só.

Até que a saudade anunciou: embora não poderei ir. Me acostumei a ti.
A lua morria, já conformada, já esperançosa.

Abraçados, a saudade e eu acompanhávamos a lua partir,
e o doce riso dos clichés preenchiam os vazios da casa, alheia.

domingo, 26 de maio de 2013

One ou crônica fabular

O primeiro tijolo. O segundo. Daí a sucessão contínua, intercalada com porções generosas de cimento a unir o que o homem pode separar em poucos golpes. Lentamente a coisa ganha forma à medida que levanta-se do chão ferido. Vem a chuva, a obra atrasa, algo se perde, é preciso comprar novamente, se o item é raro dobra-se o tempo até encontrá-lo, uma hora acha, a obra continua. As paredes sobem rápido, são a parte mais fácil e dão à construção o aspecto necessário para que olhos curiosos entendam o que se constrói, não vão pensar que se trata de casa pequena ou prediozinho, este é dos grandes, enorme por sinal, será preciso mais que marteladas para derrubá-lo. A cada nove andares seu perímetro externo é diminuído, Babel será, mas só chegaremos ao octogésimo primeiro. Quem quiser maior que vá para Nova Iorque ou Mumbai.

Por dentro é que ninguém vê.  Revestimento fino, piso branco, amplos quartos, uma ou outra parede torta, cerâmica lascada, nada que chame a atenção. Se analisar andar por andar, nove vezes nove, é certo que mais paredes e cerâmicas, em relação ao resto, se encontrarão em dissonância, palavra sonora esta, melhor aplicável a uma mal executada obra de Brams. O que, porém, está dentro não importa, o prédio imponente ergue-se sobre a cidade, refletindo-a, não bastará muitos anos e o reflexo será baço, ação dos tempos, o que demarca as chuvas e o que engole os filhos.

Ei-lo pronto. Quem viver até o futuro chegar verá que ele não ficará em pé por mais que vinte e sete anos, vida curta para um prédio, mas isso também acontece com os relacionamentos. Novos olhos, curiosos ao verem a imponência feita em farelo, vão se perguntar por quê, por quê, esquecem-se de olhar para a história. O terreno, ainda que embrionário, guarda o rancor do que lhe fora tirado, outro prédio, outros tempos. As colunas e vigas, bastante sólidas até, não foram suficientes para segurá-lo, talvez a base não fosse tão profunda. O edifício anterior sim era rocha firme, caiu por conta de ações externas, não há o que ao homem não se curve. Este novo, porém, cai por incompetência de seus construtores, fundações rasas, terreno mal preparado. De nada  valeu a beleza do projeto. De nada valeu construí-lo maior e mais belo que seu antecessor. De nada valeu a intenção.

Sem a devida atenção e respeito à história, do passado e do presente, homens e prédios desmoronam.

domingo, 19 de maio de 2013

Apropriação Indébita ou Sobre os ombros de Drummond

Sempre que lhe faltar as palavras, diz o onisciente narrador em mim, recorra aos versos de Drummond. Em um deles estará escrito exatamente o que quer dizer.


Os Ombros Suportam o Mundo
Carlos Drummond de Andrade


Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

(in Sentimento do Mundo)

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Cortina Nova

Se voltar desejos
ou se eles foram mesmo
lembre da nossa música

Se lembrar dos tempos
dos nossos momentos
Lembre da nossa música
(Música - Vanessa da Mata)



Era feita em duas camadas, uma de linho, em branco maculado, e a outra em seda rústica, mais cândida. O vento roçava-lhe todos os dias, aos primeiros olhares do sol ou ao dormir da tarde. Sua alvura impura completava a harmonia do ambiente, contrastando com a madeira escura do chão e tornando ainda mais suave a maciez bege das paredes.
Nos primeiros dias ouviu-se apenas o som árcade dos pássaros. E ondas de uma represa nos arredores. Assim: o vento abria-lhe e os sons entravam, como que a inundar a sala. Bem-te-vis, sabiás, não se sabia ao certo, e a água, evocando o mar distante.
Então vieram os acordes da Moonlight Sonata, que permaneceram até o fim. E também ecoavam alguns de Wagner, o romântico. E outros. Já os pássaros e o mar haviam passado. Os novos sons escondiam-se nos livros do escritório, entre os mantimentos do armário, em mangas de camisa no varal. Dominaram a casa por  longo tempo, confirmando a sua potência e beleza.
Até que o silêncio fez ouvir-se. E não seria a única vez. O vento soprava, as cortinas se abriam e o mundo interior quietava-se. Tudo era  um nada silencioso, quase mortífero. Mesmo a sonata beethovenniana prolongava-se no vazio entre um e outro movimento. Os móveis funcionavam como caixas acústicas a reproduzir o vazio que adentrava a janela.
A chuva rompia por vezes o silêncio. Bátegas amedrontavam as janelas. A tempestade ruidosa apegava-se aos eletrodomésticos, mesmo quando o sol brilhava intensamente lá fora. E um vozerio, em dissonância com a estrondosa água caindo, se apresentou, comprometendo a harmonia até então, e contrária à lógica, inabalada da casa.
Foi preciso remover as cortinas e substituí-las por novas. Num primeiro momento fez-se o silêncio, mas não o mesmo de antes: este era embrionário. E, após, quando as removeram de seu suporte de carvalho, milhares de sons escorregaram por suas camadas: pedaços de chuva, adágios, palavras soltas, pássaros - bem-te-vis, sabiás, ou outros - e o som do mar, ainda distante.