sábado, 17 de março de 2012

Notas para vida #1

a infância nunca passa. volta em conversas desajeitadas, em vazios que gritam aos ouvidos atentos, em erros repetidos. nos contos de heróis e de amor.

(da seção de notas mentais para uma vida tranquila)

quarta-feira, 14 de março de 2012

casa decorada

Been thinking about you, your records are here
your eyes are on my wall, your teeth are over there
but I'm still no-one, and you're now a star
what do you care?
(radiohead)


Quando voltou do hospital, coração novo, ficou a perguntar-se o que faria com o antigo, que pedira ao médico para guardar e entregar a ele quando pudesse ir embora. Trazia-o agora junto ao peito lado a lado com o gêmeo saudável. No curto trajeto de táxi ficava a matutar sobre o destino que daria ao coração doente, embebido em formol e estranhamente grande.

 - plante-o. – disse o taxista, pelo retrovisor. 
 - como? 
 - plante-o. – repetiu o taxista e mais nada falou. 

A ideia, a princípio, não lhe agradou, semente jogada ao léu. Desceu do automóvel, pagou a corrida, entrou em casa e resfolegou-se preguiçoso sobre o confortável e solitário sofá, o pote ainda encostado ao peito. Em seguida colocou-o na estante, junto com os livros, e foi preparar algo de comer. Casa há muito vazia, provável era que não tivesse muitas opções. E não tinha. Lembrou-se da pequena horta que mantinha no quintal aos fundos. Ao menos iria comer tomates cerejas e alfaces frescas. (Poderia, mais tarde, sair para comprar o básico para os dias seguintes.) Os vegetais estavam à espera que fossem recolhidos, exalando jovialidade e madureza. 

Foi aí que a ideia começou a enraizar-se. O vaso vazio de uma rosa que morrera encontrava-se disponível, com terra boa, pronto para receber um novo inquilino. 

Ele sabia de suas habilidades para com as pequenas plantas, exceto as que dão flores. Os tomates e alfaces eram provas de que conseguia dar-lhes o necessário para que nascessem e prosperassem, até poderem cumprir com o papel que haviam recebido no mundo. Na verdade, sabia muito de hortaliças, daí o sucesso dos resultados. Mas quando o assunto era destas, as que encantam e exalam perfumes, e que normalmente não se come, colecionava fracassos. Foram as rosas da última vez, e antes as orquídeas e antes ainda as tulipas: todas secas pelo excesso ou falta de água. 

Preparou os tomates e a alface. Comeu saudavelmente. E, de súbito, pegou o pote da estante, levou-o para o quintal. Selecionou alguns instrumentos para o trabalho e deixou-se perder no estranho prazer que lhe dava mexer com suas pequenas experiências em plantações. 

Um dia, dois, três. Tudo parecia recoberto de novidade: as atividades mais corriqueiras (fazer compras foi uma aventura de descobertas), as relações com os colegas do trabalho. Todo mundo comemorava e elogiava seu novo ar; diziam que ele estava mesmo precisando renovar seu coração. 

Aos seus olhos, a cidade também perecia nova. Via cada lugar já conhecido com olhos de quem vê o exótico. E deliciava-se. O quarto, o quinto e o sexto dia de seu regresso destinou-os a visitação dos espaços que ficaram na memória, os da infância, e tudo era uma novidade contraditória. As ruas de criança, os parques do adolescente, do namoro, as casas dos amigos. Só os terrenos baldios não mais existiam. O antigo era novo para ele, para seu coração sem emoções. 

No sétimo dia resolveu ficar em casa e descansar. Sentia que esta vida reiniciada lhe traria mundos a descobrir, e precisava estar preparado. Foi largar-se ao prazer das plantas, a arte que dominava e lhe acalmava. 

Não chegou exatamente a ficar surpreso com o que vira no antigo vaso da rosa. O coração brotara, ainda tímido e com medo da imensa claridade além da terra úmida. O que lhe assustava era não saber qual procedimento tomar. Mais uma vez o dilema das rosas, orquídeas e tulipas, com o agravante de que aquela minúscula e indefesa planta era seu coração antigo. 

Ficou o resto do dia a observar a obra, procurando apreender cada novo detalhe. O lento despertar, visto de tão perto, nem era tão lento assim: em poucas horas algumas folhinhas desenrolaram-se para o dia alto, puxando o caule imerso na terra. Este tomava coragem e erguia-se, altivo ainda que baixo, para o mundo de fora. 

O dia escorregou pelas horas. Quando a noite já ia velha, e não se ouvia mais do que os ruídos urbanos de uma cidade que nunca dorme, o broto principiou sua revelação. 

Já voltara à rotina. Acordar cedo, ir ao trabalho, (uma xícara de café na pausa rápida da manhã), almoçar com os colegas, (outra xícara de café na pausa rápida da tarde), ir embora. Às vezes um bar depois do expediente, (às sextas era sagrado) outras o trem lotado direto para casa. 

A flor atrasava-se. Seu broto era grande e suculento, mas não se abria. Quem o visse assim, fechado, decerto concluiria de que se trata de uma flor das grandes, dália ou girassol. 

Agora o dia rastejava. As novidades passaram, o mundo já era velho de novo. Esparsos minutos entre uma e outra atividade no trabalho alongavam o tempo, distanciavam ainda mais ele de seu coração prestes a florir. E somente a flor vaidosa parecia manter-se atual, com a caprichosa arte de não se revelar. 

Mas enfim aconteceu. Ao acordar no meio da madrugada para beber água e matar a sede noturna, notou pela janela uma claridade avermelhada, tênue, vinda do quintal. A flor do coração estava ali, rubra e arredondada, pronta para ser dividida em suculentas partes. Constituía-se de duas pétalas neste formato comercial dos corações sentimentais. O estranho é que mesmo assim, tão cliché, a flor encantava. 

Passou o resto da madrugada enamorando a parte de si que gerara algo tão prosaico e ao mesmo tempo poético. Deixou-se atrasar para o trabalho, tomou mais que duas xícaras de café no período da manhã, perdeu as contas de quantas elas se repetiram à tarde e, ao sair, recusou o bar sagrado de sexta. 

A flor estava mais e mais exuberante. De um rubro intenso e vivo. Ele a admirava. A mão, hesitante no gesto ousado, aproximou-se das pétalas e as acariciou. O sangue correu feliz pelos seus dedos em direção a terra. Rapidamente recolheu a mão. Seu coração antigo ainda o magoava. Resolveu deixa-lo só por aquela noite e dormiu, sem acordar de madrugada para espiá-lo. 

Era difícil concentrar-se no trabalho. Os colegas cochichavam, o coração novo poderia estar mostrando sinais de rejeição. Aconselharam-no a deixar o café de lado: cafeína demais nos deixa acelerado, diziam. Se fosse ao bar, seria bom tomar um suco em vez da tradicional cerveja. Que tomasse um táxi de vez em quando, só para não passar pelo aperto do trem. 

Deixou o bar de lado. Os cafés. Continuou a usar o trem, e não era só pela falta de dinheiro para o táxi, mas por ser o lugar em que se sentia protegido. Em casa, começou o lento trabalho de mover os objetos de lugar, redecorando-a, dando-lhe uma nova aparência a partir do que já tinha. Arrumou um lugar para sua flor na sala, ao lado da estante de livros. Harmonizou o ambiente dando ao velho uma nova roupagem. 

O coração continuava a recusar o toque, o afago. Sempre bebia algumas gotas de sangue. Ele até acostumara-se aos ligeiros cortes; ia se deixando calejar. Por vezes um desejo repentino de ser aceito e não mais machucado o acometia. A flor, todavia, mantinha sua postura de recusa. 

Ele resolveu ignorá-lo de vez. O coração que ficasse ali, abandonado. E os dias correram, lentos uns, rápidos outros. Transformaram-se em semanas. Uma ou outra ida ao bar alimentou o desejo de resistência. Novas experiências com as hortaliças ajudavam a obliterar a presença da flor. 

Então notou: as pétalas davam sinais de cansaço. Mostravam-se menos rubras, mais apagadas. Compadecido, tocou-a de leve. O fio de navalha ainda permanecia. No dia seguinte a flor radiava. 

Custou a entender o óbvio. Para se manter vivo o coração doente exigia seu sangue. Reconheceu o egoísmo da flor, mas não tinha certeza quanto ao que fazer. Abandoná-la até que finalmente morresse? Continuar a alimentá-la ainda que às custas de sua dor? 

Quando decidiu por abandonar o antigo coração à própria sorte, viu algo de estranho misturado à terra do vaso. Cinco sementes. Tinham o formato de minúsculas nozes e não feriam ao toque. Ele as recolheu e por um instante hesitou em o que fazer com elas. Sabia do risco que corria se as plantasse. E se todas fossem como o coração pai, a cobrar a existência em sangue vivo? 

Novos vasos foram comprados. A casa, em algumas semanas, emanava uma tênue aura rubra. As flores viçosas estavam felizes e expeliam beleza. Ele, cada vez mais pálido, sentia um certo gozo em sua criação. Mas o coração novo no peito começou a dar sinais de cansaço. A rejeição seria diagnosticada e ele, mais uma vez, voltaria à mesa operatória.