domingo, 23 de outubro de 2011

CONCEIÇÃO

"Em seguida, vi-a endireitar a cabeça, cruzar os dedos e sobre eles pousar o queixo, tendo os cotovelos nos braços da cadeira, tudo sem desviar de mim os grandes olhos espertos"
Machado de Assis


Reviro-me na cama. Meu braço cai por sobre o buraco vazio ao lado. Dentro de mim a inquietude duma alma a vagar por espaços do que foi e do que é. Há alguém em minha sala, ou em qualquer outra: em tempo de insônia os lugares multiplicam as presenças.

É estranho o desejo. Não sei, pois, se é desejo. Meu corpo mexe, afoga-se em águas próprias. Será esta a atriz por trás da personagem diária, morna? Neste momento as paredes parecem mais profundas, mas espessas. As cortinas estão cerradas, ninguém me vê fora do espetáculo. Estou sozinha; um corpo, em desgaste começado, sozinho.

Não há vozes, não há ruídos, não há passos. Mas sei que ele está lá. Sei que espera, assim como aguardo o marido tão amante de teatro. Quem na sala está tem o frescor da ingenuidade, um quê de pureza lasciva. As minhas mãos contraem-se, molhadas. Um ideia surge e percorre as veias do meu corpo. Pergunto se devo me servir ao hóspede da sala. Cada poro meu expele a ideia que surgiu. O pensamento levanta da cama altivo, decidido. Sei que vou à sala. Abro a porta e explodo em cores de Almodóvar.

São Paulo, primavera de 2008