domingo, 23 de junho de 2013

terça-feira, 11 de junho de 2013

Mal-feito feito

Desceu do coletivo e só então se deu conta de onde estava indo. Quando decidira ir neste e não em outro, considerou apenas a comodidade, a facilidade de acesso, uma vez que usaria transporte público. Desceu, e seu coração deu um salto. Aquele lugar, o reino das burocracias, prova irrefutável da racionalidade humana. O peito pulou mais uma vez ao primeiro passo em direção ao local, mas ele deu pouca importância a isso. Decidiu continuar.

Algumas lembranças turvavam sua visão enquanto atravessava a rua. Sábado de manhã, a mais forte, ele brigando com o nó da gravata, nervoso com o atraso da mãe. Meses antes deste sábado, passado do passado, numa terça-feira fria, a odisseia para encontrar o lugar, as voltas intermináveis no carro, a mesma mãe falando sem cessar. Mais um salto do coração.

E o sábado novamente, a manhã luminosa, a alegria incontrolável. Sentiu que o coração passava pela garganta. O estranho era que, na lembrança, via tudo do alto, como num video-game 2D que adota por ponto de vista o olhar de deus. Via-se na fila, os parentes ao lado, ela linda, ele lindo - supunha, pois de onde observava, ele fora de sua própria recordação, não permitia que visse os rostos.

Chegou à porta do local. Na lembrança, a fila acabava-se, eis a sua vez. O coração fugiu-lhe da boca e correu desesperado pela avenida, no sentido que tinha vindo. Ele pensou em correr atrás do órgão fugitivo, mas ponderou: seria mais fácil estar ali sem o coração. E também aquele órgão já lhe era alheio, fruto de uma plantação mal sucedida.

Entrou, a fila estava ali, não mais a lembrança. Todavia sua visão continuava turva, úmida. Sentia o rasgo na garganta e doía-lhe cada vez que algum dos atendentes gritava "próximo". Chegara a sua vez, afinal.

Os documentos, as três vias, chamavam de abertura de firma. "Endereço?" A pergunta era inesperada, doeu-lhe responder. "Estado Civil?" E desabou, entendera porque os olhos permaneciam turvos. Não era preciso mais um coração para sentir o que sentia, aliás, nunca foi necessário. "Fique diante da câmera para a foto". Seriam aqueles os olhos eternizados ao lado de sua assinatura.

Pagou e saiu. Rodou muito antes de voltar. Viu carros de polícia passando rápido, uma ambulância, o giroflex pouco lhe chamou a atenção. Enfim, retornou. Deixou a mochila, tão pesada naquele momento, no chão e foi distrair-se com a internet. Sentiu o vazio no peito.

As primeiras páginas dos sites foram rápidas em explicar tal vazio: um coração invadira a casa de uma garota, fizera-a refém. A ação policial foi rápida. Apenas um tiro no órgão, o suficiente. Seu dono, porém, deu pouca importância à fatal perda. Era o cérebro quem, afinal e sempre, comandava. E tudo ainda permaneceria ali.


"Não quero que nosso amor
seja um buraco no não
mas sinal na trajetória
da vida e da canção
Marca de queda e vitória
na palma da mão
Sombra, memória e porvir do coração

Não deixe que o nosso amor
seja  um corisco no caos
mas passos da liberdade
pisando seus degraus
feitos de momentos bons
e de momentos  maus
de descobertas, de ventos, velas, naus"

Caetano Veloso, cantada por Maria Bethânia

meu presente.