quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

nota sobre um cliché

Quando você foi, a  Ausência veio ser minha companheira, e o silêncio é o idioma que juntos aprendemos a falar.

Vez-em-quando poesio para ensinar a ela que não estamos sós. O silêncio tem muitos dialetos, mas poetar é sempre língua universal.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Hoje

Hoje deixo as palavras por conta própria
elas não precisam de mim
do trato e do carinho que ofereço

deixo
e vou ao encontro dos meus
no barracão
no busão
no vagão
lotados
de sonhos que forram a terra
cobrem o teto
seguram-se em barras
                     paralelas
e nadam em rio sem vida

daqueles que tornam a luta
gesto maior que um pronome
mão quente acariciando o rosto
atravessando a madrugada fria

hoje sou mais um e vou
na multidão
dos que me tornam palavra
e concedem-me este carinhoso gesto solidário

vou e converto-me em poesia de luta
que, mesmo sob a eterna falta do poeta
concretiza-se
em lona, canção, cadeia
dia-a-dia.


sábado, 9 de novembro de 2013

Montauk

Deu branco, se diz do que não lembra
palavras esquecidas (canções de ninar ao telefone)
choro entalado

Nuvens em céu claro: brancas
é o futuro que passa sem cair no chão
chuva dissipada pelos raios - brancos - do sol

Branco de roupas no varal
longínquas tardes em praça inventada
amizade aquecida pelo abraço alvo do tempo

Areia branca de neve em Montauk
sons espumosos no mar
vento acompanhando o amanhecer

set-light redondo sobre o rosto: branco
segundo-plano desfocado
ninguém vê o que se perde

Branco, fade-out demorado
prenúncio do fim ou de uma nova sequência
expectativa dentro do vaso vazio.

Enfim, branco da memória
luz dura incidindo sobre a cabeça
e o mundo todo é azul.

Carrego-as assim, as lembranças:
talhadas em geleiras eternas
brancas, alvas lacunas.

domingo, 20 de outubro de 2013

De Vinicius para mim (conselho de Um Maior)

(...)
"fez-se do amigo próximo, distante
fez-se da vida uma aventura errante
de repente, não mais que de repente"


Poeta, você que ainda está longe destes meus cem anos, perceba como eu cantei a vida. Como amei-a em cada boca, pele, poro. Como bebi de peito aberto a tristeza humana minha, do povo que me rodeia, e a trouxe à poesia. Mas, principalmente, observe como nada concluí: no máximo lancei indagações ao universo, imenso engolidor de desejos.

Você pode até afirmar, como meu amigo Bandeira, que tem todos os motivos menos um de ser triste. Mas não caia na grande besteira de achar que tristeza qualquer é poesia. Esta é um passo além: do que, do quem, do quando, do onde, do porquê.

Então, viva a poesia apenas quando ela resolver lhe bater à porta. E se ela não vier, deixe que a errância da vida te guie. Errar é um bom caminho. Se não trouxer acalanto, ao menos te fará botar olhos em outros detalhes da estrada.

com carinho,

V. de M.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Nota inconclusa sobre o que sou, o que somos

Pergunto-me já há um tempo se o que fazemos no campo das artes - este nós implícito é um imenso EU periférico - pode ser medido pela mesma régua com que se mede a dita arte produzida pela e para as elites. Não que um burguesinho não possa vir aqui apreciar um espetáculo da Cia. Humbalada e achá-lo interessantíssimo. Seu aporte de análise, sua régua seria a mesma utilizada para avaliar um músical Brodway ou uma peça dos Sátyros, compreendido os devidos campos de produção de um e outro espetáculo. Mas tal régua seria o melhor instrumento para avaliar uma produção não só marginal por ser produzida na periferia, por membros dela e para ela, e sim por se conceber, na relação discurso-estética, uma obra periférica?
"Antígona, a mulher marginal" me colocou a questão de forma mais evidente. Qualquer crítico poderá vê-la somente como teatro-performance. Quem é daqui, porém, tem uma porta a mais para acessá-la. E só quem entra, talvez, consiga de fato compreender a dimensão que este espetáculo tem.

domingo, 6 de outubro de 2013

Consideração do poeta

(...)Tal uma lâmina
o povo, meu poema, te atravessa.
(Drummond, Consideração do poema)

Para Xs companheirXs de luta

O poeta vê o barro molhado da chuva
os barracos precários que sobrevivem
o vento assombrando a brava lona preta

Vê vozes desenhando sonhos
afrontando capitais projetos
e não sabe o que dizer

O poeta vê a palavra povo
que abandonou a poesia e os círculos e bares
da Vila Madalena e Augusta
que se tornou teoria empoeirada
Em Pinheiros e no Butantã
e sabe o que não quer dizer

Vê a criança inventando nova vanguarda
embaixo da corajosa árvore centenária e vívida
o pipa que esquiva-se e sobe adiantado
pintando de vermelho um céu de inverno
perdido na primavera

O poeta não diz
Sabe que o silêncio em tempos de luta
também é boa poesia.


Ilusión

É. Você vê um fiapo de luz no fim do horizonte e pensa "bem, agora é um caminho novo que se abre", e vai alimentando e sonhando e tals. Daí, numa tarde de domingo (e tinha que ser no domingo!), na terra de meus sonhos literários, do Caio que nunca saiu das primeiras páginas dum livro que nunca foi acabado, você vê que a luz é um trem na sua direção. Em formas de pôr-do-sol. So sad.

E aí, vida: nem uma ilusão?


segunda-feira, 30 de setembro de 2013

domingo, 1 de setembro de 2013

Quimera

Posso eu pedir rendição à ti, vida? Dizer, simplesmente, "me rendo. Você venceu." Não seria sábio aquele que reconhece a superioridade do inimigo? Sua arma, minha cara, é invencível: não me negas o amor, somente proíbe-me revelá-lo. E se há coragem no nobre ato de lutar pelo que se quer, não haveria também, e em maior grau, na ousadia de desistir do que mais se ama?

sábado, 17 de agosto de 2013

Decreto

Minhas lembranças são aves. A haver inundação é de céu, repleção de nuvem. Vos guio por essa nuvem, minha lembrança.
(Mia Couto)


Decreta-se que, a partir de hoje, no céu da memória sempre haverá branca nuvem, solitária e felpuda, a mancar por toda a abóboda, aliviando no seu coxear a ressaca de cada Santos que porventura embriague-se de saudade.


sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Higgs

(ao Mais-Novo, irmão-poeta que tanto me ensina, mesmo sem saber)

Quando o jogo acaba. Cartas: 21. Vitória. Derrota.
Quando escrever já não resolve (amigos engordam o corpo que insiste em esvaziar-se. Evadir-se.).
Quando apenas o eco áspero ecoa na casa vazia. Nós, o vazio.
Quando nem mais formas: as lembranças, volumosas, migram para o norte.
Quando nem resquício de terra, relva, grama, gramas.
Quando só resta o que não tem nome. O que despregou-se do Caos, do Eros primordial.
Quando não resta mais: nem não nem nada, nem o fim, enfim.

Eu, duplo, vazio em dobro.
Eu, todo sul, permaneço.
Imóvel. Intocável. Uma partícula,

apenas.

domingo, 11 de agosto de 2013

Apropriação Indébita 2 ou brincando com os grandes

Quando Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, viu-se metamorfoseado em um monstruoso inseto. E eu, eu era a sua sombra, sonâmbula e informe como as sombras são.

domingo, 4 de agosto de 2013

Irreversível

Hoje, dia que encerra em si outros dias, pesa sobre mim um quê inexorável, uma frase, um espinho:



sábado, 6 de julho de 2013

Entre os dentes, a Primavera

E envolto em tempestade, decepado
entre os dentes, segura a primavera
Secos & Molhados
 
Eis que da força quase nula, do desgaste entorpecente, da angústia áspera, da menor vida, mínima, a flor, drummondiana, revela-se e promete. A primavera assoma no horizonte.
 
 

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Dia de mentira

Digo que estou feliz (e na verdade é a tristeza espaçosa que m'embala). Que saio ao teatro ou a eventos importantes para minha formação - eu, que deformada estou pelas circunstâncias -  com amigos, amiga (e não saio, somente espero e recebo a visita da solidão). Digo tudo ao contrário para que te sintas bem, neste dia outrora especial. Te engano, sem saber que me conheces e sabes muito mais do que gostaria que soubesses. E finjo como o poeta português, para ti tão poeta, tão importante para mim.
Mas eis que a noite vem, o silêncio chega e um abraço, em reais braços, faz o dia findar. Passando a meia-noite não preciso mentir; a segunda é questão de horas.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

continho à la J.S.


Arrancaram-lhe o mundo. Cristina vagava no vazio, só corpo, com as estrelas a cintilar longinquamente. O vazio era escuro, como todos sabemos que é, mas um escuro gordo e multiforme. Ela, a jovem garota, ia perdendo a noção de si, imersa no inominável, o mesmo que engolia Fantasia. E, como se não bastasse, viu, por olho alheio, o mundo que perdera, estranhamente reconhecível, o olhar, claro, que o mundo, este ela reconhece sem nenhum estranhamento.
Cristina tentou esforçar-se para sair do vazio e recuperar o que seu era. Vê-se aí que não é por falta de vontade que este conto não se completa. Queria voltar ao antes, ao não-mais. O vazio, todavia, remodelava-se a cada tentativa de fuga da moça. E os olhos alheios, cruéis sem saber que eram, a lhe mostrar o mundo perdido, a lhe gerar cada vez mais vontade e cada vez mais inércia.
Foi-se entregando aos poucos, as forças esvaídas. O vazio imperava. Hoje, se o conto morreu, não foi pela ausência de conflito.

domingo, 23 de junho de 2013

terça-feira, 11 de junho de 2013

Mal-feito feito

Desceu do coletivo e só então se deu conta de onde estava indo. Quando decidira ir neste e não em outro, considerou apenas a comodidade, a facilidade de acesso, uma vez que usaria transporte público. Desceu, e seu coração deu um salto. Aquele lugar, o reino das burocracias, prova irrefutável da racionalidade humana. O peito pulou mais uma vez ao primeiro passo em direção ao local, mas ele deu pouca importância a isso. Decidiu continuar.

Algumas lembranças turvavam sua visão enquanto atravessava a rua. Sábado de manhã, a mais forte, ele brigando com o nó da gravata, nervoso com o atraso da mãe. Meses antes deste sábado, passado do passado, numa terça-feira fria, a odisseia para encontrar o lugar, as voltas intermináveis no carro, a mesma mãe falando sem cessar. Mais um salto do coração.

E o sábado novamente, a manhã luminosa, a alegria incontrolável. Sentiu que o coração passava pela garganta. O estranho era que, na lembrança, via tudo do alto, como num video-game 2D que adota por ponto de vista o olhar de deus. Via-se na fila, os parentes ao lado, ela linda, ele lindo - supunha, pois de onde observava, ele fora de sua própria recordação, não permitia que visse os rostos.

Chegou à porta do local. Na lembrança, a fila acabava-se, eis a sua vez. O coração fugiu-lhe da boca e correu desesperado pela avenida, no sentido que tinha vindo. Ele pensou em correr atrás do órgão fugitivo, mas ponderou: seria mais fácil estar ali sem o coração. E também aquele órgão já lhe era alheio, fruto de uma plantação mal sucedida.

Entrou, a fila estava ali, não mais a lembrança. Todavia sua visão continuava turva, úmida. Sentia o rasgo na garganta e doía-lhe cada vez que algum dos atendentes gritava "próximo". Chegara a sua vez, afinal.

Os documentos, as três vias, chamavam de abertura de firma. "Endereço?" A pergunta era inesperada, doeu-lhe responder. "Estado Civil?" E desabou, entendera porque os olhos permaneciam turvos. Não era preciso mais um coração para sentir o que sentia, aliás, nunca foi necessário. "Fique diante da câmera para a foto". Seriam aqueles os olhos eternizados ao lado de sua assinatura.

Pagou e saiu. Rodou muito antes de voltar. Viu carros de polícia passando rápido, uma ambulância, o giroflex pouco lhe chamou a atenção. Enfim, retornou. Deixou a mochila, tão pesada naquele momento, no chão e foi distrair-se com a internet. Sentiu o vazio no peito.

As primeiras páginas dos sites foram rápidas em explicar tal vazio: um coração invadira a casa de uma garota, fizera-a refém. A ação policial foi rápida. Apenas um tiro no órgão, o suficiente. Seu dono, porém, deu pouca importância à fatal perda. Era o cérebro quem, afinal e sempre, comandava. E tudo ainda permaneceria ali.


"Não quero que nosso amor
seja um buraco no não
mas sinal na trajetória
da vida e da canção
Marca de queda e vitória
na palma da mão
Sombra, memória e porvir do coração

Não deixe que o nosso amor
seja  um corisco no caos
mas passos da liberdade
pisando seus degraus
feitos de momentos bons
e de momentos  maus
de descobertas, de ventos, velas, naus"

Caetano Veloso, cantada por Maria Bethânia

meu presente.

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Poeminha da lua e da saudade

Hoje a saudade bateu à porta com todos os seus clichés. Veio passar um tempo, dois talvez. Trouxe a lua que não vivi ontem à noite, minguada, à espera do mês que vem.

Conversamos, a saudade, a lua e eu,
enquanto os clichés corriam pela casa, sem se darem pelo que falávamos.

A saudade, carinhosa, resolveu abraçar-me,
enquanto a lua chorava seu fim iminente.

Deixei-me tombar nos braços da saudade. A lua, então, veio molhar meus pés. 
Éramos, nas frações dos segundos que passavam, um só.

Até que a saudade anunciou: embora não poderei ir. Me acostumei a ti.
A lua morria, já conformada, já esperançosa.

Abraçados, a saudade e eu acompanhávamos a lua partir,
e o doce riso dos clichés preenchiam os vazios da casa, alheia.

domingo, 26 de maio de 2013

One ou crônica fabular

O primeiro tijolo. O segundo. Daí a sucessão contínua, intercalada com porções generosas de cimento a unir o que o homem pode separar em poucos golpes. Lentamente a coisa ganha forma à medida que levanta-se do chão ferido. Vem a chuva, a obra atrasa, algo se perde, é preciso comprar novamente, se o item é raro dobra-se o tempo até encontrá-lo, uma hora acha, a obra continua. As paredes sobem rápido, são a parte mais fácil e dão à construção o aspecto necessário para que olhos curiosos entendam o que se constrói, não vão pensar que se trata de casa pequena ou prediozinho, este é dos grandes, enorme por sinal, será preciso mais que marteladas para derrubá-lo. A cada nove andares seu perímetro externo é diminuído, Babel será, mas só chegaremos ao octogésimo primeiro. Quem quiser maior que vá para Nova Iorque ou Mumbai.

Por dentro é que ninguém vê.  Revestimento fino, piso branco, amplos quartos, uma ou outra parede torta, cerâmica lascada, nada que chame a atenção. Se analisar andar por andar, nove vezes nove, é certo que mais paredes e cerâmicas, em relação ao resto, se encontrarão em dissonância, palavra sonora esta, melhor aplicável a uma mal executada obra de Brams. O que, porém, está dentro não importa, o prédio imponente ergue-se sobre a cidade, refletindo-a, não bastará muitos anos e o reflexo será baço, ação dos tempos, o que demarca as chuvas e o que engole os filhos.

Ei-lo pronto. Quem viver até o futuro chegar verá que ele não ficará em pé por mais que vinte e sete anos, vida curta para um prédio, mas isso também acontece com os relacionamentos. Novos olhos, curiosos ao verem a imponência feita em farelo, vão se perguntar por quê, por quê, esquecem-se de olhar para a história. O terreno, ainda que embrionário, guarda o rancor do que lhe fora tirado, outro prédio, outros tempos. As colunas e vigas, bastante sólidas até, não foram suficientes para segurá-lo, talvez a base não fosse tão profunda. O edifício anterior sim era rocha firme, caiu por conta de ações externas, não há o que ao homem não se curve. Este novo, porém, cai por incompetência de seus construtores, fundações rasas, terreno mal preparado. De nada  valeu a beleza do projeto. De nada valeu construí-lo maior e mais belo que seu antecessor. De nada valeu a intenção.

Sem a devida atenção e respeito à história, do passado e do presente, homens e prédios desmoronam.

domingo, 19 de maio de 2013

Apropriação Indébita ou Sobre os ombros de Drummond

Sempre que lhe faltar as palavras, diz o onisciente narrador em mim, recorra aos versos de Drummond. Em um deles estará escrito exatamente o que quer dizer.


Os Ombros Suportam o Mundo
Carlos Drummond de Andrade


Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

(in Sentimento do Mundo)

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Cortina Nova

Se voltar desejos
ou se eles foram mesmo
lembre da nossa música

Se lembrar dos tempos
dos nossos momentos
Lembre da nossa música
(Música - Vanessa da Mata)



Era feita em duas camadas, uma de linho, em branco maculado, e a outra em seda rústica, mais cândida. O vento roçava-lhe todos os dias, aos primeiros olhares do sol ou ao dormir da tarde. Sua alvura impura completava a harmonia do ambiente, contrastando com a madeira escura do chão e tornando ainda mais suave a maciez bege das paredes.
Nos primeiros dias ouviu-se apenas o som árcade dos pássaros. E ondas de uma represa nos arredores. Assim: o vento abria-lhe e os sons entravam, como que a inundar a sala. Bem-te-vis, sabiás, não se sabia ao certo, e a água, evocando o mar distante.
Então vieram os acordes da Moonlight Sonata, que permaneceram até o fim. E também ecoavam alguns de Wagner, o romântico. E outros. Já os pássaros e o mar haviam passado. Os novos sons escondiam-se nos livros do escritório, entre os mantimentos do armário, em mangas de camisa no varal. Dominaram a casa por  longo tempo, confirmando a sua potência e beleza.
Até que o silêncio fez ouvir-se. E não seria a única vez. O vento soprava, as cortinas se abriam e o mundo interior quietava-se. Tudo era  um nada silencioso, quase mortífero. Mesmo a sonata beethovenniana prolongava-se no vazio entre um e outro movimento. Os móveis funcionavam como caixas acústicas a reproduzir o vazio que adentrava a janela.
A chuva rompia por vezes o silêncio. Bátegas amedrontavam as janelas. A tempestade ruidosa apegava-se aos eletrodomésticos, mesmo quando o sol brilhava intensamente lá fora. E um vozerio, em dissonância com a estrondosa água caindo, se apresentou, comprometendo a harmonia até então, e contrária à lógica, inabalada da casa.
Foi preciso remover as cortinas e substituí-las por novas. Num primeiro momento fez-se o silêncio, mas não o mesmo de antes: este era embrionário. E, após, quando as removeram de seu suporte de carvalho, milhares de sons escorregaram por suas camadas: pedaços de chuva, adágios, palavras soltas, pássaros - bem-te-vis, sabiás, ou outros - e o som do mar, ainda distante.

domingo, 7 de abril de 2013

frame by frame

Cada enquadramento, captado na ingenuidade dos momentos, revela as verdades possíveis. São eles, os momentos, que contam o que muitas vezes ignoramos, ou preferimos ignorar. E só quem reparar na delicada relação presença/ausência saberá compreender as estórias.

Supercloses e detalhes

O tempo suspendeu
-se. Congelou
(partículas de água no frio intenso).
O gesto ficou por terminar,
mão no rosto,
polegar sobre os olhos
recolhendo
uma
lágrima. E o soluço,
inacabado.
Os pratos sobre a mesa,
a comida sobre os pratos:
tudo imóvel, tudo

em pênsil.
À espera: a faca de pão,
a rede da varanda,
o tapete
os quadros,
o choro e a mamadeira.
Os móveis e as viagens.
O desejo.
Suspenso na atmosfera
inefável
do futuro.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Brilho eterno de uma mente sem lembranças em umas poucas palavras


Às vezes o fim estava no início, mas não nos damos conta... Às vezes o recomeço está no fim e igualmente não percebemos.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Deus seja louvado

Na floresta amazônica, a milhares de quilômetros daqui (daqui sendo um qualquer lugar confortável de uma metrópole como SP), uma menina vende seu corpo a um motorista de caminhão: R$20,00. Em outro ponto do país, numa praia em Natal por exemplo, um jovem da classe média gaúcha gasta R$500,00 em ecstasy e outras substâncias para consumir com seus colegas, em férias na cidade. Na mesma região, em Salvador, cobra-se R$  5,00 para se visitar a Igreja de São Francisco, enquanto a baiana pede R$3,00 ao fazer pose para uma foto. As escolas particulares mineiras arrecadam das elites locais em torno de R$1000,00 por cabeça para garantir que os filhos delas recebam boa educação e possam perpetuar  as estruturas sociais. No Rio de Janeiro, um moleque do morro vende a um playboy da zona sul três trouxinhas de maconha por R$5,00 cada; o mesmo playboy também leva 3gr de cocaína por R$60,00. No Guarujá, em SP, um dono de restaurante fica injuriado por conta da diferença de  R$7,00 na conta de um universitário.
Poderia-se parar por aqui, mas vamos um pouco mais fundo. A menina foi vendida pelos próprios pais a um cafetão da região; agora, sem estudar, ela abre a boca e as pernas para receber homens imundos e sem escrúpulos; um dos jovens que consumiu ecstasy na praia já havia fumado um baseado e bebido todas e acaba de ter uma parada cardíaca; a baiana torna sua imagem um produto e vende-se feliz pouco se importando com os dilemas morais por trás do ato; os jovens estudantes das escolas mineiras ocuparão as vagas das universidades públicas, deixando à imensa maioria da população - os pobres - as vagas (pagas) nas fracas instituições de ensino superior privadas; o moleque do morro pega uma quantia maior do que lhe cabe no tráfico, e acaba perdendo a vida, enquanto o playboy comemora com os seus na noite carioca; o universitário, de 22 anos apenas, é assassinado a facadas e o autor do crime foge com outros envolvidos. E a igreja de São Francisco, casa de deus para alguns, arrecada seus quinhões enquanto a miséria corre solta, pelas valas, como a urina dos foliões.

Enquanto isso, o escritor intriga-se com uma questão: por que os ateus e agnósticos, ou melhor, por que os ateus e agnósticos concordam em tirar a frase das cédulas de real?