segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

votos de fim de ano


Tá, é final de ano e todo mundo espera uma palavra de acalanto, um voto de prosperidade, uma esperançazinha para o ano que vai começar.

Infelizmente não posso desejar boas festas, feliz ano novo, sorte-amor-felicidade a todo mundo. Não é isso que o Mundo precisa. Desejarei, em vez, que certos imbecis sejam cada vez mais infelizes em seus comentários  e ações preconceituosas, de natureza homofóbica, machista ou racista. E desejarei também que mais e mais pessoas fiquem infelizes quando ouvirem esses comentários. E que, quando a infelicidade for geral, possamos enfim extirpá-la como se corta um membro gangrenado.

Desejarei força e inteligência para as lutas, as diárias e as épicas. Para as lutas que se lutam em conjunto, não para aquelas em que se faz para benefícios individuais. Para estas desejo sorte. Que a sorte fique para os bobos que acham que podem mudar a própria vida com as doses de alienação as quais estão viciados. 

Desejarei o fim do amor. Não de qualquer amor, mas deste egoísta, que pensa mais em si e nos seus. Que esse amor possa ser substituído por outro, limpo de vontades divinas que selecionam alguns e condenam tantos. Um amor que lute e enfrente todo e qualquer ato desumanizador. Que combata os discursos e ações desumanizadoras, de origem religiosa, política ou (o pior mal) político-religiosa.

Desejarei o fim da esperança, esta que nos faz ficar sentados à espera de milagres. Que o fim da esperança possa gerar o acordar do espírito, do corpo, do humano. E que, não havendo mais a crença na existência de um mundo melhor para além, as pessoas comecem a construí-lo no aqui e agora.

Desejarei coragem para pegar em armas sempre que necessário. Não as armas de fogo (mas não as tirem do horizonte, porque podem ser necessárias), mas  as palavras. As canções. As pedras. E que munidos de um arsenal potente possamos destruir tudo aquilo que barra a construção de um novo mundo.

Que não nos enganemos, enfim. Há muito que fazer antes da completa prosperidade e bonança. Muito sangue, literal e figurado, a correr. E é preciso estar consciente, de olhos abertos, para vencer.

Estes votos são os meus.


sábado, 17 de novembro de 2012

Sobre identidade ou Quando Calle 13 passou por aqui

(para minha amiga Vany, latino-americana apaixonada)



Amigo leitor: ouça bem a música que posto. Pode não parecer, mas ela fala muito de você, também. Ela se chama "Latinoamérica" e é de uma banda porto-riquenha chamada Calle 13. Eu, quando a ouvi pela primeira vez, senti uma vergonha estranha. Música de uma banda de um país que nem país é (Porto Rico é território estadunidense), cantada em um espanhol que consigo entender, mas sobretudo com um trecho em bom português na voz de Maria Rita. E de onde vem a vergonha?

Desconsiderando a música do Belchior, é muito difícil ver um brasileiro se reconhecer como pertencente a uma coisa chamada América Latina. Ou melhor: reconhecer-se como latino-americano. Somos brasileiros, fomos "descobertos" por portugueses e falamos a língua que Camões usou. A América Latina é algo como uma simples vizinha, com quem temos, país do futuro que somos, os nossos prepotentes interesses. Parece que o pensamento que permeia o imaginário brasileiro não nos vê como um país cuja história é semelhante ao dos países vizinhos nossos. Antes, somos ávidos em afirmar nossas diferenças.

Mas não é bem assim. E o pior, que é de onde vem a vergonha, nossos "vizinhos" sabem disso. Sabem, melhor do que nós, que a nossa história é a mesma, que os algozes foram os mesmos, revestidos de diferentes nacionalidades, mas com os mesmos objetivos e praticando as mesmas ações. Sinto vergonha em ter passado muito tempo sem me pensar como "apenas um rapaz, latino-americano". Sinto vergonha em saber que os meus hermanos me reconhecem como tal, mas que nunca me dei conta disso.

Os livros de história não falam. A história oficial não fala. Mas a terra sabe. Se você, leitor, ouvi-la, vai achar no mínimo revoltante o comentário do sr. Alckmin neste vídeo.

Latinoamérica nos ensina algo muito além do que as palavras podem dizer. Mas é preciso deixar o coração entrar no mesmo compasso desta canção.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Texto-Esboço para os Oito Anos.

(para Ela, sempre)

Era um filme que veríamos. Um filme que foi se revelando nas longas conversas de telefone, e trocas de mensagens em que se abreviavam as palavras para se conseguir dizer mais. Era um filme para selar o fim do que sequer havia começado. Era assim mesmo: antes do começo, o fim.

Sabe-se lá que mágicas o cinema faz! Uma noturna luz disfarçava a tarde lá fora. Domingo. E nós, ali, a ver o filme prometido. Desconhecíamos os caminhos do amor, que conduziam os braços aos abraços apaixonados, os lábios ao ávido beijo. Eis que o filme aproximava-nos: sentar lado a lado, oferecer um colo, aceitar um afago. A película, na verdade, era a água que regava o campo semeado com palavras. Sempre as palavras. Poderiam brotar a qualquer momento, tornarem-se reais e terríveis, converterem-se em atos, ações e, portanto, não terem mais volta.

A tarde entregava-se aos jogos de crianças, às conversas de portão e aos goles de bar. Nós, à semi-obscuridade, à vontade de começar o que já havia acabado. E foi assim que as palavras, muitas delas abreviadas, outras prolongadas em horas que adentravam madrugadas, brotaram. Um gesto, um braço, um abraço, um beijo, uma explosão. O fim.

Daí então, o início.

sábado, 22 de setembro de 2012

Aprendendo com o Dráuzio

Ouvi o Varella dizer que o corpo humano é a máquina mais perfeita que a natureza criou. E é verdade. Agora, não sei se a seguinte sentença é válida: "o ser humano é uma máquina perfeita". Também deve ser. Só um ser perfeito para ter criado deus, a resposta para todas as perguntas.

A criação de Adão - Michelangelo, Capela Sistina, Vaticano

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Três mesmas estórias e um fim


(estória para se ouvir ao som de Todos os Olhos, do Tom Zé)

             Ele foi pego. Três tiros perfuraram sua cabeça: no centro da testa, abaixo do olho direito e na boca. Um tiro na glote. Cinco tiros entraram pelo tronco: no esquelético peito, lado esquerdo e direito, na boca do estômago, dois na barriga magra. Quatro tiros nos membros inferiores: na coxa esquerda, joelho esquerdo, tornozelo direito e pé esquerdo, destroçando o tênis da última moda. A camiseta branca abaixo da blusa preta estava empapada de um sangue negro, viscoso, que corria pelos buracos abertos e formava uma poça escura ao redor da massa inerte. A calça de moletom amarelo perdera sua cor primeira e desaparecia no meio do lago escuro, absorvendo-o como se quisesse devolver ao antigo dono o líquido derramado. Não havia por perto nenhuma garrafa de leite estilhaçada. Se o peito ainda arfava, tentando atrair para si as últimas rajadas de ar, e se a boca ainda guardava um gosto macio e cheiroso, ninguém pôde constatar, pois a confusão ao redor crescia, saindo da calçada e ocupando duas faixas da avenida. Pessoas tentavam entender o que se passara. Outros pareciam estar contentes. O ônibus –  antes com todos os assentos, todo o corredor e vãos em que pudesse se instalar um corpo humano ocupados – jazia vazio, com as luzes inutilmente acesas. Todos estavam em volta da massa que desaparecia em sangue e sombras.
            Eles foram cumprimentados. Um, responsável por um tiro no olho, na boca, três no tronco (peito direito e esquerdo e boca do estômago), um no membro inferior; o outro, por três tiros nas pernas, dois na barriga e um na glote; o terceiro, por fim, dera o tiro na testa, o que fez o sangue espirrar e manchar a aba branca do boné que escondia o rosto alvo do corpo violado. Eles riam, aceitavam os aplausos. Carregavam mochilas nas costas. Através de uma delas, ligeiramente aberta – pertencente ao responsável pelo tiro na testa –, se via pedaço de um tecido uniformemente cinza. Alguém falava sobre a coragem dos distintos moços. Ouviu-se um agradecer a deus por estarem naquele momento no ônibus, voltando para casa depois de um dia de serviço árduo, o uniforme provavelmente na mochila que carregavam, o instrumento de trabalho, porém, ainda na cintura. Sorte, disseram, pois deu tempo de descer do ônibus e acertar a perna, fazendo o corpo tombar na calçada, próximo do asfalto. Depois foi só correr à caça ferida e terminar o serviço. Pena que aquele outro já se via longe, sem chance de ser pego. Estavam em volta do corpo, exibiam suas armas salvadoras, não viram nenhuma garrafa de leite estilhaçada, apenas a mancha negra que crescia e sujava a calçada recém reformada.
            Ela já estava aliviada. Quando ouvira o barulho do ônibus se aproximando, não exitara ao atirar-se em sua frente, pois julgava ser melhor morrer daquele jeito do que pelas mãos ásperas e asquerosas daqueles dois sujeitos pretos, eram pretos?, sempre são pretos. Sorte ou azar, o ônibus parou em cima de seu corpo, sem lhe causar nenhum mal. O susto, provavelmente ocasionado pela presença quase física da morte, a fez parar, o que permitiu que os elementos a alcançassem. Arrastaram-na, disse, para a viela sem iluminação ali perto, levantaram sua saia branca, rodada. Um a prendia pelo pescoço, quase lhe privando a entrada de ar. O outro rasgou a calcinha e, ferido com um chute da perna que se debatia, revidou com um tapa violento na face direita umedecida de lágrimas desesperadas e um soco na boca do estômago frágil. Não fosse o indivíduo a segurá-la, seu corpo tombaria indefeso no chão. Sentiu quando sua blusa foi escancarada e seus seios apertados com violência e lambidos por uma boca selvagem e fétida e nojenta. Mas o ônibus havia parado e algumas pessoas desciam. E ela se viu salva quando eles a soltaram e correram para fora do beco escuro. Um atirou-se no meio dos veículos que passavam com velocidade reduzida, pois o coletivo parado em local inesperado obrigava-os a andar com cautela. O outro, com medo de ser pego por um dos carros que passavam, correu pela margem da avenida. Ela foi amparada por outras mulheres compadecidas; viu que uma multidão corria pela calçada, mais para frente. Ouviu um som áspero, monocorde, rápido. A este se sucederam doze outros baques iguais. Pediu para ser levada ao local dos tiros. Encontrou apenas um corpo no meio-fio, o sangue escorrendo para o asfalto, sem nenhuma garrafa de leite estilhaçada. Também cumprimentou aqueles que fizeram o que ela não poderia ter feito. Transeuntes se juntaram a multidão do coletivo e já ocupavam dois terços da avenida. Os carros passavam lentamente e demoravam ainda mais para entender o que havia ocorrido.
            Ali perto, um motorista discutia os males do trânsito com o seu patrão, sentado no banco de trás, enquanto observavam descontraidamente a movimentação da qual se aproximavam.

(conto perdido, provavelmente de 2008)

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Estórias sem fim

Era uma vez em 2003. Todos juntos porque só assim que sabíamos viver. Todos juntos, mas cada um em território conhecido, delimitando fronteiras com os mais próximos. Todos juntos, e mesmo assim uma áurea cinza se espalhava, nublando os caminhos que poderiam ligar uns aos outros. Juntos e a mesa acolhedora modificava sua geografia para receber aqueles que chegavam atrasados.

As mãos de Marininha tamborilavam um copo meio cheio de refrigerante de laranja. Seu riso grande procurava disfarçar o nervosismo com a chegada de Heliodora, nova namorada de seu novo amor Gloomys. Esther pedia a opinião de Marininha para tudo: suco ou refri, coca ou fanta, mussarela ou catupiry. E insistia para a amiga não pensar mais em Gloomys. Não merecia seu afeto depois do que fez. Marininha entrava no jogo e tentava se distrair. Dizia que Antônio não tirava os olhos da amiga.

Gloomys beijou a radiante Heliodora com o entusiasmo de quem muito esperou. Agora sim o coração aliviara-se, o ar carregado ficaria um pouco mais suportável; a presença indesejável seria sombra à mesa, ainda que vez por outra ofuscasse o sol. Não ignorava que em algum momento teria que se resolver com o J. H., mas achava melhor deixar as águas correrem, e com elas a raiva que sentia.

O J.H. aproveitou a recém chegada e a reorganização dos lugares para sentar-se ao lado do Costinha, o melhor de nós. E, juntos, riam de tudo: do suco aguado de abacaxi, da cara bufante de Gloomys, do chapéu de viking de Heliodora. E riam sobretudo dos presentes dados a um dos aniversariantes, o Antônio: revistas masculinas e uma caricatura sua com orelhas enormes. Nem sempre riam. Por vezes o J.H. apoiava as mãos fechadas sobre a mesa, olhava em volta e retomava a conversa com o Costinha sobre o recém término de namoro de sua irmã, e da postura agressiva de Gloomys por conta disso.

Os risos de Costinha e J.H. atraíram o de Marininha, carente de um afeto que eu gostaria de dar. Conversavam sobre qualquer assunto e, naquele riso fácil, fundavam um arquipélago fechado a estranhos. Diferente de LaRossa, que deixou-se isolada e triste. Preferia não dar sinais de estar aberta a relações e a risadas. Seu olhar percorria cada um da grande mesa, como se buscasse ou questionasse, sem nada encontrar. O Antônio tentava puxá-la para a conversa, sem muito sucesso. LaRossa trocava palavras, fazia comentários simples e voltava ao seu mundo particular.

Heliodora ganhou apenas presentes de Gloomys. Era nova no grupo, trazida pelo namorado, e por isso os presentes acharam por bem ficar apenas no clássico "parabéns" e "felicidades". Ela, sempre esfuziante, recebeu os abraços. Mas pouco fez para tentar enturmar-se. Gloomys parecia enfurecido e ela sentia-se na condição de responsável por acalmá-lo. Sabia que o problema era a presença de J.H., a quem não lhe pareceu má pessoa. Não poderia fazer nada além de encher o namorado de carícias. Pelas apresentações, soube que a irmã de J.H não viera, o que já era positivo. Acreditava quando Gloomys dizia não sentir mais nada por ela, no entanto é sempre incômodo compartilhar o mesmo espaço, o mesmo ambiente com alguém que meses atrás estava em nossos braços.

Flashes dos presentes. Dali a pouco todos iriam embora com suas dores e suas vidas por começar. O Costinha terminara as piadas e as risadas. Tomara o refrigerante de laranja que Marininha acabou por abandonar. Já pareciam amigos de longa data. Esther, que fugia dos olhares fictícios de Antônio, jogava as brincadeiras de Costinha, Marininha e J.H. O melhor de nós chamou a atenção para o horário, estava no limite do tempo que sua mãe havia estipulado.

LaRossa já estivera em meus braços. Seu silêncio na mesa talvez se explique. Antônio continuava o centro das atenções, ou o ponto de fuga. Sabia que todos estavam ali não só pelo seu aniversário, mas pelo dia em si, um dia vinte no meio das férias de meio do ano. Estava feliz por isso, por esse companheirismo que unia dez mesas de bar. Todos, que em algum momento serviram de molde às suas estórias, estavam juntos. Pela última vez.

O Banana iria enlouquecer e sumir. A Tatu e o cobrador terminariam, voltariam, teriam um filho e terminariam de novo. A Esther casaria com um bombeiro. O Camelo iria trabalhar para o Hyatt Hotel. O Dinho seria promotor da Positivo. A Tolie iria inventar estórias que nos afastariam ainda mais. O Medusa e eu estudaríamos juntos. E os outros?

Todos voltavam do último passeio da adolescência. Ônibus errado, cada um ficando pelo caminho. À meia-noite uma canção ecoou nas ruas pela última vez. E depois? Depois,

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Losing My Religion ou apontamentos em rascunho



Há onze anos que essa música, de alguma forma, me fala verdades sobre mim. Desafia as minhas convicções. Meus medos. Me escreve em sons. A questão que se coloca é: sou, então, o mesmo de onze anos atrás? Talvez alguns erros possam se repetir: sobras de um passado mal resolvido?


Hoje só me dou perguntas.

sábado, 17 de março de 2012

Notas para vida #1

a infância nunca passa. volta em conversas desajeitadas, em vazios que gritam aos ouvidos atentos, em erros repetidos. nos contos de heróis e de amor.

(da seção de notas mentais para uma vida tranquila)

quarta-feira, 14 de março de 2012

casa decorada

Been thinking about you, your records are here
your eyes are on my wall, your teeth are over there
but I'm still no-one, and you're now a star
what do you care?
(radiohead)


Quando voltou do hospital, coração novo, ficou a perguntar-se o que faria com o antigo, que pedira ao médico para guardar e entregar a ele quando pudesse ir embora. Trazia-o agora junto ao peito lado a lado com o gêmeo saudável. No curto trajeto de táxi ficava a matutar sobre o destino que daria ao coração doente, embebido em formol e estranhamente grande.

 - plante-o. – disse o taxista, pelo retrovisor. 
 - como? 
 - plante-o. – repetiu o taxista e mais nada falou. 

A ideia, a princípio, não lhe agradou, semente jogada ao léu. Desceu do automóvel, pagou a corrida, entrou em casa e resfolegou-se preguiçoso sobre o confortável e solitário sofá, o pote ainda encostado ao peito. Em seguida colocou-o na estante, junto com os livros, e foi preparar algo de comer. Casa há muito vazia, provável era que não tivesse muitas opções. E não tinha. Lembrou-se da pequena horta que mantinha no quintal aos fundos. Ao menos iria comer tomates cerejas e alfaces frescas. (Poderia, mais tarde, sair para comprar o básico para os dias seguintes.) Os vegetais estavam à espera que fossem recolhidos, exalando jovialidade e madureza. 

Foi aí que a ideia começou a enraizar-se. O vaso vazio de uma rosa que morrera encontrava-se disponível, com terra boa, pronto para receber um novo inquilino. 

Ele sabia de suas habilidades para com as pequenas plantas, exceto as que dão flores. Os tomates e alfaces eram provas de que conseguia dar-lhes o necessário para que nascessem e prosperassem, até poderem cumprir com o papel que haviam recebido no mundo. Na verdade, sabia muito de hortaliças, daí o sucesso dos resultados. Mas quando o assunto era destas, as que encantam e exalam perfumes, e que normalmente não se come, colecionava fracassos. Foram as rosas da última vez, e antes as orquídeas e antes ainda as tulipas: todas secas pelo excesso ou falta de água. 

Preparou os tomates e a alface. Comeu saudavelmente. E, de súbito, pegou o pote da estante, levou-o para o quintal. Selecionou alguns instrumentos para o trabalho e deixou-se perder no estranho prazer que lhe dava mexer com suas pequenas experiências em plantações. 

Um dia, dois, três. Tudo parecia recoberto de novidade: as atividades mais corriqueiras (fazer compras foi uma aventura de descobertas), as relações com os colegas do trabalho. Todo mundo comemorava e elogiava seu novo ar; diziam que ele estava mesmo precisando renovar seu coração. 

Aos seus olhos, a cidade também perecia nova. Via cada lugar já conhecido com olhos de quem vê o exótico. E deliciava-se. O quarto, o quinto e o sexto dia de seu regresso destinou-os a visitação dos espaços que ficaram na memória, os da infância, e tudo era uma novidade contraditória. As ruas de criança, os parques do adolescente, do namoro, as casas dos amigos. Só os terrenos baldios não mais existiam. O antigo era novo para ele, para seu coração sem emoções. 

No sétimo dia resolveu ficar em casa e descansar. Sentia que esta vida reiniciada lhe traria mundos a descobrir, e precisava estar preparado. Foi largar-se ao prazer das plantas, a arte que dominava e lhe acalmava. 

Não chegou exatamente a ficar surpreso com o que vira no antigo vaso da rosa. O coração brotara, ainda tímido e com medo da imensa claridade além da terra úmida. O que lhe assustava era não saber qual procedimento tomar. Mais uma vez o dilema das rosas, orquídeas e tulipas, com o agravante de que aquela minúscula e indefesa planta era seu coração antigo. 

Ficou o resto do dia a observar a obra, procurando apreender cada novo detalhe. O lento despertar, visto de tão perto, nem era tão lento assim: em poucas horas algumas folhinhas desenrolaram-se para o dia alto, puxando o caule imerso na terra. Este tomava coragem e erguia-se, altivo ainda que baixo, para o mundo de fora. 

O dia escorregou pelas horas. Quando a noite já ia velha, e não se ouvia mais do que os ruídos urbanos de uma cidade que nunca dorme, o broto principiou sua revelação. 

Já voltara à rotina. Acordar cedo, ir ao trabalho, (uma xícara de café na pausa rápida da manhã), almoçar com os colegas, (outra xícara de café na pausa rápida da tarde), ir embora. Às vezes um bar depois do expediente, (às sextas era sagrado) outras o trem lotado direto para casa. 

A flor atrasava-se. Seu broto era grande e suculento, mas não se abria. Quem o visse assim, fechado, decerto concluiria de que se trata de uma flor das grandes, dália ou girassol. 

Agora o dia rastejava. As novidades passaram, o mundo já era velho de novo. Esparsos minutos entre uma e outra atividade no trabalho alongavam o tempo, distanciavam ainda mais ele de seu coração prestes a florir. E somente a flor vaidosa parecia manter-se atual, com a caprichosa arte de não se revelar. 

Mas enfim aconteceu. Ao acordar no meio da madrugada para beber água e matar a sede noturna, notou pela janela uma claridade avermelhada, tênue, vinda do quintal. A flor do coração estava ali, rubra e arredondada, pronta para ser dividida em suculentas partes. Constituía-se de duas pétalas neste formato comercial dos corações sentimentais. O estranho é que mesmo assim, tão cliché, a flor encantava. 

Passou o resto da madrugada enamorando a parte de si que gerara algo tão prosaico e ao mesmo tempo poético. Deixou-se atrasar para o trabalho, tomou mais que duas xícaras de café no período da manhã, perdeu as contas de quantas elas se repetiram à tarde e, ao sair, recusou o bar sagrado de sexta. 

A flor estava mais e mais exuberante. De um rubro intenso e vivo. Ele a admirava. A mão, hesitante no gesto ousado, aproximou-se das pétalas e as acariciou. O sangue correu feliz pelos seus dedos em direção a terra. Rapidamente recolheu a mão. Seu coração antigo ainda o magoava. Resolveu deixa-lo só por aquela noite e dormiu, sem acordar de madrugada para espiá-lo. 

Era difícil concentrar-se no trabalho. Os colegas cochichavam, o coração novo poderia estar mostrando sinais de rejeição. Aconselharam-no a deixar o café de lado: cafeína demais nos deixa acelerado, diziam. Se fosse ao bar, seria bom tomar um suco em vez da tradicional cerveja. Que tomasse um táxi de vez em quando, só para não passar pelo aperto do trem. 

Deixou o bar de lado. Os cafés. Continuou a usar o trem, e não era só pela falta de dinheiro para o táxi, mas por ser o lugar em que se sentia protegido. Em casa, começou o lento trabalho de mover os objetos de lugar, redecorando-a, dando-lhe uma nova aparência a partir do que já tinha. Arrumou um lugar para sua flor na sala, ao lado da estante de livros. Harmonizou o ambiente dando ao velho uma nova roupagem. 

O coração continuava a recusar o toque, o afago. Sempre bebia algumas gotas de sangue. Ele até acostumara-se aos ligeiros cortes; ia se deixando calejar. Por vezes um desejo repentino de ser aceito e não mais machucado o acometia. A flor, todavia, mantinha sua postura de recusa. 

Ele resolveu ignorá-lo de vez. O coração que ficasse ali, abandonado. E os dias correram, lentos uns, rápidos outros. Transformaram-se em semanas. Uma ou outra ida ao bar alimentou o desejo de resistência. Novas experiências com as hortaliças ajudavam a obliterar a presença da flor. 

Então notou: as pétalas davam sinais de cansaço. Mostravam-se menos rubras, mais apagadas. Compadecido, tocou-a de leve. O fio de navalha ainda permanecia. No dia seguinte a flor radiava. 

Custou a entender o óbvio. Para se manter vivo o coração doente exigia seu sangue. Reconheceu o egoísmo da flor, mas não tinha certeza quanto ao que fazer. Abandoná-la até que finalmente morresse? Continuar a alimentá-la ainda que às custas de sua dor? 

Quando decidiu por abandonar o antigo coração à própria sorte, viu algo de estranho misturado à terra do vaso. Cinco sementes. Tinham o formato de minúsculas nozes e não feriam ao toque. Ele as recolheu e por um instante hesitou em o que fazer com elas. Sabia do risco que corria se as plantasse. E se todas fossem como o coração pai, a cobrar a existência em sangue vivo? 

Novos vasos foram comprados. A casa, em algumas semanas, emanava uma tênue aura rubra. As flores viçosas estavam felizes e expeliam beleza. Ele, cada vez mais pálido, sentia um certo gozo em sua criação. Mas o coração novo no peito começou a dar sinais de cansaço. A rejeição seria diagnosticada e ele, mais uma vez, voltaria à mesa operatória.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Cinzas - inventações de carnaval

Os que me conhecem sabem da minha mania em levar para qualquer viagem que faço meu "diário de bordo", isto é, um registro de acontecimentos, das minhas impressões sobre os lugares que visitei. É a forma que encontrei para imortalizar os momentos vividos, sejam eles agradáveis ou não (se pretendo ser uma pessoa em constante aprendizado, não posso me furtar aos conhecimentos proporcionados por aquilo que não desejo ou acho ruim).

O recente carnaval mereceria algumas palavras por sua singularidade em minha vida. E eu não as deixei de registrar. Todavia, e isto é um fato inusitado, encontrei perdido no calçadão de São Conrado uma folha de papel abandonada, ao que parece, furtada do caderno de alguém, já um tanto pisoteada, com resquícios de água do mar e areia. Analisando seu conteúdo, é óbvio perceber que se trata de uma página de diário, ou de uma daquelas notas que se faz para registrar sentimentos - eu as fazia muito no passado. Hoje, nem tanto.

Ora, tamanha coincidência não poderia ser deixada passar em branco; afinal, sou o único a escrever sobre os dias de viagem, os refúgios de que tanto necessito? A folha perdida, encontrada ao acaso por mim, deu-me uma ideia bastante curiosa: e se eu editasse o relato, ou melhor, se eu misturasse o seu conteúdo com o meu próprio, de modo a fazer deles duas peças que se encaixam? Pensando em questões de estilo de autor, não há  muitos problemas, afinal, os relatos não são tão diferentes uns dos outros. O que de fato seria uma questão a se pensar seria a da identidade do autor: analisando alguns aspectos da folha achada, é possível supor de que se trata de uma mulher escrevendo. No entanto, como serei eu o autor da façanha de unir os textos, caberia a mim torná-los uma peça única. Ou não: penso agora que o melhor a fazer é compor os relatos de modo a evidenciar as singularidades de cada um - as quais, imagino eu, irão mostrar o quanto são semelhantes. Há a inda uma outra questão: ao transformá-los em uma coisa só, não estarei deixando de lado seu conteúdo (auto)biográfico, isto é, negando sua validade como algo real? Sim, é evidente, porém tal pergunta já deveria ser colocada antes de escrevermos: qualquer relato já não é uma invenção? Deixo os rodeios e vou-me ao trabalho:

***



O Rio de Janeiro é lindo, como nunca tinha visto, e o carnaval é o avesso do que sempre imaginei. Os dias passados aqui foram coloridos, mágicos, especiais. Mas nem assim consegui esquecer aqueles meus sentimentos que sempre me acompanham. O Rio sempre foi meu local de fuga, desd'eu menino. Vir para cá me traz a ideia de descanso, de convívio em família, e até o calor tão singular que impede o sono e nos amolece o dia me parece agradável. Mas estar aqui significa principalmente um rompimento com o cotidiano, máquina diária monotonando a existência. Canso-me muito do que sou, do que me transformo enquanto Cronos devora a minha vida. Canso-me dos sentimentos sem sentido que me acometem, dos vazios infinitos que me enredam, da angústia tão antiga e íntima que só pode ser eu mesmo. Viajar me permite conhecer minha própria angústia, conversar com ela, entendê-la. Mas estar com ela é estar só. Preciso, por isso,  administrar a parcela de mim que precisa estar em contato com os companheiros e aquela que ficará em companhia da angústia. Viajar me corta em dois. Acho que estar nesta constância de ser duplo é que gera minha imobilidade, maior mal. Estar nesse encontro de forças me inutiliza. Penso na facilidade e comodidade  de deixar-se tombar para um lado. Fazer isso, porém, é me negar a identidade.

Esta cidade é, como a minha São Paulo, uma cidade de contrastes. As praias são maravilhosas, as paisagens deslumbrantes, e em muitos locais você sente a harmonia entre natureza e a obra humana. Mas o que está distante da região mais abastada (pelo menos até onde conheci) é feio, sujo, fedorento. A cidade é muitas dentro dela mesma. Parece um pouco comigo. Sou pelo menos duas dentro de mim. Estou aqui tão feliz, contente mesmo, mas há uma parcelinha, não muito pequena, que sempre chora e se sente deslocada.

Se eu pudesse ir embora e deixar toda a angústia seria quase um abandono de mim mesma. Ou seria como libertar-se de um casulo para se transformar em outro ser, o verdadeiro ser? Não penso em verdades absolutas: o Acacio que sou é um caleidoscópio das coisas que viveu: não há um verdadeiro Acacio por baixo das máscaras sociais que somos obrigados a vestir. Elas sou eu. 

O Carnaval, o Rio, os dias quentes ficam para trás do tempo e do espaço. Às vezes a memória me trará os flashes da Lapa e de seus arcos brancos, suas escadarias multicores, de São Conrado, areia calma, forte mar. De sorrisos e do sorriso ingênuo e carinhoso, em barba por fazer. De olhos tristes e do medo de ser eu eu o motivo deles. Às vezes desejarei reviver cada segundo dos dias antes passados; outras quererei esquecê-los, apagá-los. Mas é certo que esses dias já fazem parte do meu relicário de pequenas dores e felicidades.

Os momentos evanescem com o andar do ônibus em direção ao Porto Seguro. Os sentimentos, estes continuam a latejar dentro disso a que chamam alma. Se pudéssemos reter na retina os momentos que nos acham, como fazemos com algumas imagens, talvez poderíamos explicar melhor a nós mesmos o que sentimos.

Já as palavras voltam aos seus lugares. Finda a viagem, o refúgio. Mas trago angústias e anseios novos, sufocados já em seu nascer. A ideia de Cronos sempre me persegue: o tempo a devorar seus próprios filhos, que somos nós mesmos. E eu também não faço como meu Pai? Todas essas dores, angústias e anseios, não sou eu a devorá-los, guardá-los na barriga? E se um dia um deles me despojar e virar rei? Não sei. Até lá estarei como sempre estive: revestido de minha couraça de estoicismo, permitindo-me certos rompantes de alegria, raiva, tristeza. Porém o grosso de todos esses sentimentos continuará represado até a queda deste titã.


quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

TV DE PLASMA (NOVO MEMBRO DA FAMÍLIA)


     Sofá disposto em L. Três paredes brancas e uma azul-índigo. TV de plasma, quarenta e duas polegadas, na parede em destaque. Mesa de centro, refrigerante, pipoca, guardanapos. E a campainha.
            - E aê, primão!
            - Fala, mano!
            - Trouxe o jogo? Hoje o negócio vai ser do outro mundo!
            - ... Olha o tamanho desta TV? Meu, vai ser irado!...
            - ...Ela tem definição full HD, entrada USB, dá pra conectar no computador e jogar on-line!
            - ...Meu, que imagem perfeita!
            - A resolução é de 1024 x 768 pixels. A imagem parece real. Você precisa ver o Call of Duty como fica!
            - Oi, meu querido? Quer comer alguma coisa?
            - Não agora, tia.
            - Mãe, traz um refrigerante pra nós! Este já tá quente e acabando.
            - Claro, meu filho. Ah, depois eu quero ver a novela...
            - ... E o Resident Evil, então?! O som dos zumbis gela até a alma!
            - O cara lá do trampo tem home theater. O negócio é animal.
            - É que você não viu a ligação que eu fiz. As entradas auxiliares estão ligadas no rádio. Ouve! MEU! DÁ PRA SENTIR A PAREDE BALANÇAR!
            - AH, EU TROUXE TAMbém o jogo do Senhor dos Anéis. O gráfico dele deve ficar chapado na TV.
            - E você precisa ver os filmes! Olha isso aqui! Olha, olha, olha: os canais da net têm transmissão HD e a imagem fica perfeita!
            - A tecnologia é animal...
            - Claro que não tem 3D, mas esta não fica por baixo, não! A gente aproveitou que ia sair de linha e comprou por um preço bacana.
            - Que sorte, hein! Meu pai comprou uma de LED, mas ela é bem menor que essa.
            - Tem cachorro-quente e hambúrguer. O que você prefere, querido?
            - Eu quero os dois, tia!
            - Eu também, mãe. Ah, tem salgadinho ainda? Pega pra nós?
            - Vamos comer primeiro? Tá me dando uma fome...
            - O cachorro-quente já tá pronto. Vocês podem ir comendo enquanto eu frito o hambúguer.
            - Eu joguei ontem o Harry Potter. O jogo é besta, mas o gráfico é muito bom.
            - Ah, depois eu quero jogar o Winning Eleven contra você.
            - Pra perder de novo?
            - Que perder o quê? Você é que perdeu pra mim da última vez que eu vim aqui!
            - Que eu perdi! Você não lembra, não? Eu ganhei de você de três a um.
            - Faz logo o cachorro-quente pra salsicha não esfriar. Tem batatinha no armário.
            - Cadê a maionese?
            - Pega na geladeira, querido!
            - Mas hoje eu vou vencer você! Você vai ver!
            - Sonha, garoto!
     O som do hambúrguer na chapa. Catchup sobre a toalha branca. Maionese, bata-palha e uma panela com salsicha em molho de tomate. Copos cheios de coca-cola. E o barulho do portão.
            - O pai chegou!
            - Deixa eu preparar o lanche dele. Meninos, o hambúrguer tá pronto.
            - Você tem o Assassin’s Creed?
            - Claro! Eu comprei também o God of War. Chapado!
            - Deve ser louco na sua TV.
            - Acaba logo que eu já te mostro.
            - Oi! E aí, Rogério!
            - Beleza, tio?
            - Amor, seu lanche já tá quase pronto.
            - Ainda bem! Tô morrendo de fome!
            - Mãe, vou comer o hambúguer depois. Qual você vai querer jogar, primão?
            - Escolhe aí.
            - Deixa eu te mostrar o God of War... Agora só falta eu trocar o vídeo-game.
            - Cadê o segundo controle?
            - Em cima da rack. Olha só esta imagem! Olha a definição!
            - Cara, é-mui-to-lin-do! Chapado!
            - Péra aí! Você não queria ver o Assassin’s Creed? Calma aí... o vídeo-game já tá meio zoado... só mais um pouquinho...
            - Putz! Esqueci de trazer o Final Fantasy dez! Que merda!
            - Olha o Assassin’s Creed! Esse jogo é dos infernos!
            - Coloca o Winning Eleven aí!
            - Já quer perder?!
            - Você vai ver quem vai perder!
            - Meninos, tá na hora da minha novela!
            - Ah, mãe, dá um tempo aí!
            - Que tempo, que nada! Você passou o dia todo jogando vídeo-game!
            - Que passei o dia todo, mãe! O Rogério só chegou agora!
            - Tá, mas eu avisei que queria ver a novela...
            - E é sempre na hora que eu vou jogar!
            - Não. É você que quer jogar na hora da minha novela.
            - Porra! Eu nunca posso jogar vídeo-game!
            - Olha a boca! Você passou o dia inteiro em casa.
            - Só que eu quero jogar agora. Pode ser? Ou eu só posso jogar na hora que vocês não querem usar a TV?
            - Vocês vão passar a madrugada toda jogando. Dá pra esperar um pouquinho?
            - Ah, claro! Eu chamei o Rogério aqui pra ficar vendo novela!
            - Primão, sem problema...
            - Sem problema o quê, Rogério?! É sempre assim! Eu tenho que seguir a vontade deles, jogar vídeo-game na hora que ninguém quer usar a TV. Eu não tenho vontade, eu não posso escolher... agora não! Eu vou jogar na hora que eu quiser.
            - Ah, não vai não! Tá no horário da minha novela e sou eu quem vou assistir!
            - Isso! Pode mandar nessa porra! Eu nunca posso fazer nada, mesmo!
            - Olha a boca, moleque! Respeita a sua mãe!
            - Que respeito, porra nenhuma! Eu fui respeitado por acaso?
       - Abaixa a bola que quem manda nessa porra sou eu! Você fica o dia todo vagabundando, sem fazer nada, seu imprestável!
            - Ah, agora eu sou o imprestável! Quando era pra pesquisar a TV eu servia, não é?! Tudo bem: essa porra é de vocês, mesmo!
            - JÁ FALEI PRA VOCÊ MANEIRAR NO TOM, PORRA!
            - Ah, quer saber: não quero ver mais novela nenhuma!
            - Você vai ver sim! Já não arrumou confusão? Então faz o que você quiser com essa merda! Toma a porra do controle...
            - Me respeita, moleque! Você tá falando com sua mãe!
            - Que respeito o quê! Eu nunca sou respeitado nessa porra!
            - Calma, primão...
            - Calma o cacete! Todo dia é assim: eu tenho que seguir o horário deles! Só posso jogar depois do jornal, depois da novela, depois do jogo. Ah, vai tomar no cu!
            - QUER LEVAR UM MURRO, SEU MERDA? Cala essa boca, você não tá falando com aquela vagabundinha sua, não!
            - Vagabunda é aquela Edith e o seu filho bastardo!
            - Você acha que me atinge chamando a Edith de vagabunda, seu moleque?! Chama ela do que você quiser, seu porra!... Fica o dia inteiro na frente do computador, da TV. Vai fuder a Mariana e vê se some da minha frente. Até parece veado: o dia inteiro em casa! Vai trepar que você ganha mais!
            - Eu trepo a hora que eu quiser, entendeu!
            - Esquece essa TV. Eu vou pro meu quarto!
            - Ah, não! Sua novela já tá passando! Você não queria mostrar que manda nessa porra? Então: pode mandar! Eu não vou jogar mais porra nenhuma!
            - É sua mãe que manda nessa porra, sim! E se você não tá satisfeito, tá na hora de ir embora!
            - Eu vou mesmo! Já não agüento mais essa merda!
            - Então acorda, moleque! Você já não tem idade de viver na minha asa, não!
            - Vai à merda, com esse papo, pai! Toda vez é isso?! Me expulsa de casa então! Vai! Essa porra é um inferno, mesmo!
            - Some da minha frente, então! Quero ver se você é homem! Vai se virar sozinho! Vai trabalhar pra se sustentar! Na sua idade eu não dependia de ninguém.
            - Me sustentar você não quer, mas ficar pagando pensão pro filho daquela vagabunda, não tem problema, não é?!
            - Já disse que você não me atinge falando da Edith e do João. E vagabundo é você que não descola essa bunda do sofá e não faz nada que presta!
            - Vai cuidar da sua vida e me deixa em paz!
     Choro. TV ligada. Telecine Cult. Filme: Festa de Família, de Thomas Vinterberg. Garrafa de refrigerante virada; líquido escuro sobre o tapete branco. E a Wikipédia define o plasma como o quarto estado da matéria, diferindo-se dos estados sólidos, líquidos e gasosos. Trata-se de um gás constituído de átomos ionizados em uma distribuição quase neutra de íons positivos e negativos. O site ainda informa que a pequena diferença de carga torna o plasma eletricamente condutível, tornando-o bastante sensível a campos eletromagnéticos.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Coisa Miserável

Coisa miserável,
Suspiro de angústia
Enchendo o espaço,
Vontade de chorar,
Coisa miserável,
Miserável

Senhor, piedade de mim,
Olhos misericordiosos
Pousando nos meus,
braços divinos
cingindo meu peito,
coisa miserável
no pó sem consolo,
consolai-me.

Mas de nada vale
Gemer ou chorar,
De nada vale
Erguer mãos e olhos
Para um céu tão longe,
Para um deus tão longe
Ou, quem sabe? para um céu vazio.

É melhor sorrir
(sorrir gravemente)
e ficar calado
e ficar fechado
entre duas paredes
sem a mais leve cólera
ou humilhação.

Poesia Completa de Carlos Drummond de Andrade, p. 55 (Nova Aguilar)