sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Todavia, a vida

A poesia de Michele Santos já esteve em sala de aula comigo, sem eu a perceber. Em 2013, ano ímpar que marcou o início do retorno do meu Saturno, sua voz aguçava os ouvidos dos meus estudantes em uma aula que preparei sobre o cenário dos saraus nas periferias de SP. Mas foram os cavalos que atraíram meus olhos às suas palavras:

 "Como se doma a alma
 de quem carrega cavalos
 no peito?"

Sabe aquelas coisas que a gente ouve e fica, durante muito muito tempo, reverberando no de-dentro da gente? Pois. E não foi diferente com seu primeiro livro, Toda via,, lançado há pouco menos de um mês. Já o li na sequência e fora dela, no trabalho e em casa, em voz alta para amigos e para mim mesmo. E não há nada que o faça calar no aqui dentro. Ainda bem, porque poesia boa tem que permanecer na gente.
Ler Toda via, é um esforço de sentidos. Está além de olhos (como fala Janaina Moitinho no prefácio) e ouvidos (alguns me dóem  na pele ("Cão", "Othelo's")). Seus poemas pedem mais que um raciocínio cerebral, obrigam a gente a ler com o coração - e ler com o coração é por o músculo em exposição, vulnerável às adagas da dúvida, à mercê de um atropelamento na BR-316. Mas o risco vale - e muito - a pena.
O livro nasce com uma madureza pouco comum às primeiras obras. Isto mostra o empenho e dedicação ao ofício de poeta de quem traz a palavra na pele. Tem um quê de um versinho do Bandeira ("a vida inteira que podia ter sido e que não foi"), mas, creio eu, muito mais daquilo que pensa Hilda Hilst acerca da poesia: 

"[o poema] é como um soco. E, se for perfeito, te alimenta para toda a vida. Um soco certamente te acorda e, se for em cheio, faz cair a tua máscara, essa frívola, repugnante, empolada máscara que tentamos manter para atrair ou assustar"

Acerta a gente em cheio a poesia dessa moça. Serve como as melhores roupas, as melhores carapuças. Flui em nós espontânea como parte da própria vida. Grande estreia. Dada aos bifes, só nos resta partilhar da mesma entrega. Demo-nos também.



final de dezembro de 2015

sábado, 19 de dezembro de 2015

prenúncio

Manso, como um sobrenome do oriente, você veio. Talvez a trilha fosse outra, talvez o calor menos ameno -
- eu estava armado. Escudo em mãos. É que a gente vai, sem perceber, desenhando ameaças em toda esquina. Antes fosse apenas o escudo, mas a gente vai, sem perceber, andando de um jeito torto, pronto pra surpreender -
E ataco querendo não querendo. A gente aprende a usar o ataque como defesa. Desculpa. Eu, de tanto sentir o azedo das palavras apodrecidas pelo tempo, sei que desculpar-se não vai lavrar o chão. O cravo - ou outra flor - não vai brotar. Não mais.
Você vai. Sorte que tenha a inteligência do pássaro que sabe a hora de buscar o verão. Eu, árvore sem nome (os nomes não alteram o perfume das acácias), mantenho firme o coração de pedra-pomes. Sentindo as folhas caírem. As palavras secarem. Mais uma vez a gente prende o grito e a vontade e depois transforma tudo em cena de filme de ação ou poema barroco.
E dorme, sem fim.



quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Academia (2)

Há, em sua obra, um claro esforço em visitar certas imagens. (...) Pássaro e árvore repetem-se em sua prosa poética evidenciando, talvez, um projeto temático, qual seja, uma espécie de brincadeira semântica que gira em torno de um conflito existencial traduzido na relação entre partir e ficar, em que o poeta explora as plurissignificações dos verbos-conceitos. Não se trata, todavia, como facilmente poderia se supor, somente do drama da morte e vida. Tal projeto desenha-se aquém e além dessas ideias: uma latente necessidade de viagem para além dos anéis de seu planeta, cerceada quase sempre pela impossibilidade de romper os laços com seu lugar de origem, até a transcendência ou não do "espírito"¹. Do contato entre pássaro e árvore, em diversos momentos, aflora uma situação de impasse. Não um impasse paralítico: é, antes, um estado de quase epifania. Como se o eu-poemático estivesse a um passo da Grande Revelação. A melancolia, característica mais evidente dos poemas que trazem estas imagens, é talvez a energia condensada no momento apórico. O pássaro irá negar o vôo? A árvore se libertará das raízes? Não há (...)







¹ O conceito de "espírito" é o que mais se aproxima daquilo que os habitantes de Saturno chamam de kaval-dûr. No entanto, a tradução mais literal do termo seria "poço". Os habitantes do planeta acreditam que cada criatura é um poço infinito de onde emana todos os sentimentos, pensamentos e desejos, e o corpo é apenas a superfície visível dele. Transcender seria chegar ao ponto em que todos os poços se conectam, o draleir krav, ou fonte primordial.

sábado, 19 de setembro de 2015

textos voantes

(algo como uma prece pros próximos anos)

Tomo longos goles do líquido escuro que brota do meu peito. Deixo-os escorrer da camisa branca à folha amarelada. Não sempre mas deste contato tão prosaico sai, par em par, umas asas coloridas. Borboletas, eu sei. E rio feliz porque aprendi: onde há borboletas há também nascentes.

***

Da memória sexagenária aos futuros planos abortados, tudo no aqui-dentro - quero costurar umas asas bem bonitas. Fazer voar as dores, deixar o amor conhecer a estratosfera. Assim: no espalho quem sabe eu me acho. E encontre quem me junte.

***

Dizem: a poesia é livre.
Mas o poema é ave em cativeiro.
(são os únicos - os únicos - pássaros que gostam de gaiolas).

***

Melancólico é o coração-árvore com desejo de asas
ave-
    -nturas.

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Concreto para um coração (ser de) cimento

(mudo diálogo com a poesia de ni brisant)

amor taça
amortece
amor desse
amordaça
amor desce
a morder-se
amar tece
amor tecido
amor dura?
[armadura]

terça-feira, 18 de agosto de 2015

Auto-ajuda

Preste atenção, Dolores.
Certas coisas são tão claras de entender que você nem se dá conta. Aprenda a enxergar.

- A próxima temporada do seriado que você acompanha não estará disponível amanhã no Netflix só porque você está deprimida;

- Se você esquecer o arroz enquanto fala ao telefone, é provável que fique sem parte do jantar;

- Ser mulher não te livra de ser machista;

- Ser negra não te livra de ser racista;

- Ser gay não te livra de ser homofóbica;

- Mas se você não é mulher, negra ou gay, pense bem antes de falar qualquer coisa a respeito (considere que ficar calada, às vezes, é o melhor que você pode fazer);

- Não meça as pessoas. Elas têm o tamanho que conseguiram atingir. Algumas maiores que você. Outras, menores. Você não poderá esticá-las. Além disso, você não é régua para servir de parâmetro para ninguém;

- Legião Urbana não é remédio;

- Trabalho não é remédio;

- Beber e fumar não é remédio (mas é mais gostoso que trabalhar e ouvir Legião);

- Pense algumas merdas de vez em quando, mas lembre-se: o facebook não é o pinico onde você se alivia;

- Falando em face, você nunca terá certeza de que suas indiretas acertarão o alvo (porque são indiretas). Aceite isso e deixe de drama, ou passe a mandar diretas;

- Nem sempre as nudes serão retribuídas;

- Cavaleiros do Zodíaco é só um desenho que fez sucesso na década de 90, feito para crianças da década de 90. Não espere que os adultos dos anos 2000 tenham os mesmos princípios morais e éticos daqueles jovens guerreiros de armadura;

- Há amigos que sabem no que você é boa. E há amigos que sabem que você é boa pessoa. Os primeiros só aparecem quando precisam. Os segundos não desaparecem;

- Aliás, não é Amizade se as partes envolvidas só se veem quando uma precisa da outra, ou quando só há uma parte interessada. O nome disso é negócio;

- A religião até te ajuda nos momentos de crise, mas você a ajuda muito mais;

- Regue as plantas, principalmente se você for, além delas, o único ser vivo da casa;

- Existem os que sabem explicar as vitórias-régias, e  outros que sabem ser como elas; escolha, então, entre quem é só discurso e quem é prática de verdade;

- A alegria é cega. A tristeza é muda. A raiva é surda.

- Se você anda sofrendo demais, desconfie. Pode não ser amor.

- Suas palavras não vão mudar o mundo. Nem as palavras de ninguém. Mas o seu lápis na mão de uma criança - também não. Agora, se você for capaz de se mudar a partir do lê e ouve, eis aí uma esperança (ou uma desgraça);

- Falando em palavras, o jornal é tão fantasioso quanto a ficção. Leia o que te dá maior prazer;

- A mulher que você precisa ser só surgirá quando a menina morrer. Por isso, sem cerimônias, mate a menina.

Textos de auto-ajuda são como fadas. Bonitinhos. Até inspiradores. Mas só são reais no mundo da fantasia. Se você quiser acreditar neles, vá em frente. A queda e o choro são por tua conta.



Micro-crônica de um assassinato

Um inseto cava
cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.
(Carlos Drummond de Andrade)



Houve um tempo em que estive feliz. Pouco mais de 365 dias de alegrias e certeza de chão. Fadas enfeitavam-me os sonhos: a parte de mim mais sólida e pura. Um dia o tempo virou. O solo converteu-se em areia movediça, e eu caía, afundava. Como âncoras amarradas aos meus pés, os sonhos não me deixavam subir. Debater-se não adiantava. Quietar só me faria sofrer menos. Situação-inseto, só uma solução. No corte, uma orquídea.

Continuo sonhando. Agora mais leve, sem horizontes. De enfeite: uma flor. Nela eu acredito.

quarta-feira, 17 de junho de 2015

canário belga

Já que voou sem dizer adeus
transmuto-lhe em palavra
para que saia de mim
e permaneça comigo.


domingo, 24 de maio de 2015

subterrâneos

Poço fundo
eu grito
O poema
um eco
que chega à
superfície

Túnel longo
de luz incerta
ao final
O poeta descrê e
espera outro trem
em sua -

sexta-feira, 8 de maio de 2015

decoração (poeminhas para encurtar a noite)

Dilema

Amar tem sido como comprar sapatos:
o modelo você gosta
mas não te entra no pé.



Defeito de fábrica

este bombeador de sensações¹ só quer saber do que não lhe corresponde.



2

Há dois anos chovo. 
Dissolvi-me pele músculos ossos.

Não desfiz-se-me ainda coração.



Só rindo

A vida anda engraçada, igual cartum
com meu coração fazendo papel de bigorna.



O pior

Anoiteci nos poemas que escrevi pensando em você.
O coração ficou acordado, incomodado, tentando arrancar o vermelho do seu sorriso que entupiu minhas artérias.

_______________
¹ "Coração de porco" In: Ondjaki. E se amanhã o medo. RJ: Língua Geral, 2010

domingo, 3 de maio de 2015

recaída

"de onde vem o jeito tão sem defeito
que esse rapaz consegue fingir?
Olha esse sorriso tão indeciso
tá se exibindo pra solidão"
(de onde vem a calma, Marcelo Camelo)


não há nenhum remédio que te salve. aquela pessoa fantástica e incrível e tudo que você quis te quis e você não quis, só para continuar escrevendo com o cotovelo tão sovado de tombos e esperas, a crosta de sangue cobrindo o peito cravejado. já casou com sua dor? porque sim, caso você se recuse a aceitar, ela, a dor, é a única companheira, e o pior é que não é escolha da dor, é sua, só sua, e ela já fugiu de você, mostrou desinteresse, e você insiste em correr atrás, procurá-la nos lugares onde é fácil encontrá-la. mas quero te dizer: não faz sentido. se ao menos este relacionamento de mão única com sua dor rendesse um punhado de bons poemas, uma meia dúzia de boa prosa. você sabe que não rende. tornou-se bom crítico de si e dos outros, sabe reconhecer o primor de um poeta, dum prosador. ou você tem algum prazer em saber-se ruim naquilo que mais gostaria de fazer bem? se for, é novidade para mim. não imaginei que sua inclinação à dor fosse tamanha. deve ser amor mesmo, afinal. então aceita essa sua condição de ama-dor deixando de fingir que busca se recuperar das perdas porque você não busca, fica fingindo quando se olha no espelho que vai fazer diferente e não faz. você vê o que enxerga no espelho? aquele mesmo menino de quatorze anos com as olheiras de agora, a mesma angústia talvez mas com outras lágrimas. sem lágrimas até. sempre te faltou coragem para quebrar o espelho porque você julga mais importante ficar olhando para dentro de si do que para o mundo que se estende atrás da imagem refletida. não ficou claro após quinze anos que a resposta, para o que for, não está aí nesta cara inchada? o ódio, eis uma novidade, mas não adianta simulá-lo, como você faz, achando que dar nomes aos bois alivia o desespero. quem te precisa ouvir usando a palavra que aprendeu - talarico - não é o seu irmão, nem seus amigos. falar à lua que você se sentiu como um copo descartável te alivia do que? deixa de lado esse ódio fingido e permanece na dor, que dela você não escapa, pelo jeito. te faz falta o mundo sorrir naqueles olhos emoldurados por um vermelho intenso. te faz falta a afinidade de ideias. e? foi escolha. sua. você sempre admirou os que lutam por amor enquanto preferia obliviar seus próprios happy ends. o tempo passou, e é provável que haja nenhum remédio que te salve.

segunda-feira, 20 de abril de 2015

domingo, 29 de março de 2015

barros. brincando de ser manoel

"vi o açude sem ter água
e secou até a mágoa
e os meninos sem comer, sem beber, sem viver"
(Nino Miau, Sol do cangaço)


amor não é,
faz. brotar setembros, adormecer marços.
lembrança sim: nuvem carregada. cai uma, duas vezes no domingo.
mágoa, palavra molhada, encharcada na primeira bátega.
ódio é sol e céu aberto. seca das nascentes.
rancor é chão rachado, sem restolho e sombra de novo aguaceiro.
amigo é sempre água de cacimba.

saudade, um sussurro soprando a segunda chuva.

quarta-feira, 18 de março de 2015

alerta-vermelho

(poema-crônica inspirado em cena da peça O errante, da Brava Cia.)

      o lado de lá gosta de associar
      em metonímico processo
      o verde, às florestas;
      o amarelo, às riquezas;
      o azul, ao céu anil;
      e a faixa branca é a corrente do
progresso.
      acreditam que assim nascemos nação

eis, porém, que uma dúvida surge:
e o vermelho do sangue indígena
cobrindo o chão paulista
pintado por bandeirantes?
do sangue grudado
nos filhos nascidos
de violações?
do corte das árvores, do corte das orelhas
do corte dos laços com a terra-mãe?
o sangue das costas
depois de açoitada
a pele negra -
que escorre pelo dorso, pelo tronco, pelo barro batido?
o sangue que desceu pelo litoral
vindo do norte
pra levantar essa cidade?
o sangue que ainda corre nos morros
muros, favelas, becos e bares?

quando a paulista vestiu verdeamarelo
o sinal vermelho acendeu em meu olho.
do lado de cá andamos dispersos.

se é verdade que falta uma bandeira que nos
una
não tenhamos dúvidas de qual será sua cor
nem da mão com que iremos empunhá-la.

segunda-feira, 16 de março de 2015

Porque ando mau dos olhos





Teu riso grudou na minha retina, deixou vermelha a transparência da conjuntiva. Até parece romantismo dizer isso, mas não, não é. Você me deixou doente. E bem quisera eu que a doença fosse só dos olhos.

domingo, 8 de março de 2015

Sem rosas, hoje

Enquanto só eu puder andar como quero nas ruas
- sem camisa, de samba-canção, fora de forma, com pêlos nas pernas e braços;

Enquanto só eu puder voltar de madrugada sozinho pra casa
- sem medo de ser violentado;

Enquanto só eu puder decidir sobre meu corpo
- assumir ou não filhos, ter prazer na hora que quiser;

Enquanto só eu tiver direito ao descanso em casa
- sem precisar me preocupar com a louça, a roupa, as crianças;

Enquanto só eu tiver o direito de transar com quem quiser
- sem ser chamado de vagabundo, vadio, vaco, puto, piranho, cachorro, pirigueto, facinho, rodado -etc;

Enquanto eu, ainda,
ganhar os melhores salários
tiver os melhores cargos
compuser mais de 80% dos cargos políticos
comandar religiões que me beneficiam, leis que me favorecem

Enquanto, ainda, eu não for culpabilizado
pelo estupro;
pela encoxada no ônibus;
pelo aborto praticado;

não posso, não devo
oferecer rosas.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

sem título (da série "salão de festas da palavra")

este amor que não te falo, você sabe, mas não te falo, traz o cheiro aveludado da saudade,

e é como pássaro de asa cortada que reaprendeu a voar com o coração. haja tanto sangue pra levantar o corpo, alçar no ar o corpo, alcançar nuvens. haja pulmão pra impulsionar o peito de rubras plumas, galgar distâncias, demoras, cantar gritos de coragem.

este amor que você conhece, conhece e não mensura, é adubo, é semente, é raiz, é pé-de-pássaro anuncia-
dor de aurora. eu,

talvez você não saiba, toda manhã ainda voo perseguindo o cheiro que ficou.

domingo, 8 de fevereiro de 2015

academia

(...)
Sabe-se que o poeta de Saturno desconhece o verso, mas não rejeita o título. Não vive nas nuvens, como os nossos: habita os maravilhosos anéis, isto porque o planeta é uma imensa bola de gás cujo núcleo, talvez rochoso, é selvagem demais até para as aventuras. Pouco sabe dos dias de sol e brisa fresca. Tal fato, todavia, não o impede de inventar tardes de calor em frente ao mar. Há mar em Saturno. São lodosos não obstante macios, e adequam-se perfeitamente às caminhadas noturnas e diurnas. O poeta de Saturno pratica caminhadas diárias como parte de seu processo criativo, o que é uma possível explicação, sugerem alguns críticos, para o tom prosaico de sua obra. Seus topoi mais expressivos são a terra como metáfora da vida; a dificuldade de criar raízes em lugares inóspitos; a festa como possibilidade de reinvenção de seu próprio mundo; e pássaros (ou suas asas, em explícito processo metonímico), símbolo não de liberdade, senão da tradução do ensejo do eu-poemático. É recorrente, ainda, a cor vermelha, associada a diferentes signos, mas possivelmente um reforço ao topos da terra.

A presente edição traduzida do original (...)

sem título


Não sei porque tua presença ainda ronda e escurece meu peito. Talvez seja o leite em pó que devoras tal qual criança. Os cabelos ruivos de Talita, mais intensos que tua barba. O café da tarde solitário, ou aquela canção de Bethânia (o que é teu já tá guardado), o mantra.

Escreveste-me em cacos, num pedaço de poema, palavra tua, descartada. Guardei-me. Guardei a pedra que o coração regurgitou. Um eu te amo que não passou pela garganta.

Já não inteiro outrora, hoje sou um caco de Pessoa, inconsciente de deuses. À espera do afago perdido. Num certo mês de setembro.

sábado, 24 de janeiro de 2015

breve crônica acerca dos primeiros dias de 2015

Viajar devia ser verbo transitivo direto. Tipo assim: eu viajo lugares, viajo pessoas e histórias. Também viajo línguas, viajo olhares, viajo lábios, viajo poemas. Viajo os cavalos de meu peito - imagem que roubei duma viagem que andava sonhando fazer.

Veja bem: acho (só acho) que viajar é mais o de dentro. A paisagem exterior é só uma tentativa de tradução desse idioma que carregamos quando colocamos os pés na estrada.

E talvez o principal: viajar nem sempre é se encontrar, mas é sempre se perder, chistes que a vida prega.



Ponte de acesso ao forte de São Matheus,
Cabo Frio-RJ. por Acacio Santos

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015