segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Da ponte pra cá: sobre o filme "bróder", de Jeferson De

Bróder é um filme ousado em muitos aspectos. Um: conta uma história sentimental, sem medo de distoar de filmes como Cidade de Deus e os Tropas de Elite. Outro: não abusa da violência, como o fizeram o Cidade e o Tropa. Terceiro: o filme foge do maniqueísmo, do bem vs mal, mocinho vs bandido. E finalmente: não parece um filme sobre pobres feito para uma classe média que já se cansou de cultura erudita. Trata-se de um filme que não só é feito por quem é da quebrada, mas para quem pertence a ela. Os dramas individuais e os códigos de conduta do microcosmo chamado Capão Redondo (que só fazem sentido dentro daquele universo) irão tocar muito quem está "do lado de cá" da ponte. Isto não significa que quem está do lado de lá não possa compreender. Mas para estes faltará a experenciação ou identificação com o que é representado.

O filme também é ousado tecnicamente. O plano-sequência inicial, em que o personagem Macu desce comprimentando seus vizinhos, já aponta para uma tônica do filme: nada do frenesi de cortes que em filmes como Tropa de Elite e

cidade de Deus intensificam a sensação de violência. O roteiro de Bróder, simples e previsível, se sustenta em estabelecer uma atmosfera de tensão, como se fosse uma panela de pressão prestes estourar - algo muito parecido com o que Spike Lee fez em Faça a coisa Certa. As histórias dos personagens tecem-se quase que imperceptivelmente: não nos damos conta, mas ao final do filme sabemos o que cada um dos três amigos sofre, sem que fosse preciso utilizar recursos como o flashback. Acho que é neste ponto que o filme de Jeferson De triunfa: o diretor se vale de um conceito aristotélico - a já batida e já esquecida unidade de tempo - para contar sua história. O desfecho todos sabemos, mas o prazer se ver o filme se encontra na maneira singular de como é narrado aquilo que conhecemos.


domingo, 23 de outubro de 2011

CONCEIÇÃO

"Em seguida, vi-a endireitar a cabeça, cruzar os dedos e sobre eles pousar o queixo, tendo os cotovelos nos braços da cadeira, tudo sem desviar de mim os grandes olhos espertos"
Machado de Assis


Reviro-me na cama. Meu braço cai por sobre o buraco vazio ao lado. Dentro de mim a inquietude duma alma a vagar por espaços do que foi e do que é. Há alguém em minha sala, ou em qualquer outra: em tempo de insônia os lugares multiplicam as presenças.

É estranho o desejo. Não sei, pois, se é desejo. Meu corpo mexe, afoga-se em águas próprias. Será esta a atriz por trás da personagem diária, morna? Neste momento as paredes parecem mais profundas, mas espessas. As cortinas estão cerradas, ninguém me vê fora do espetáculo. Estou sozinha; um corpo, em desgaste começado, sozinho.

Não há vozes, não há ruídos, não há passos. Mas sei que ele está lá. Sei que espera, assim como aguardo o marido tão amante de teatro. Quem na sala está tem o frescor da ingenuidade, um quê de pureza lasciva. As minhas mãos contraem-se, molhadas. Um ideia surge e percorre as veias do meu corpo. Pergunto se devo me servir ao hóspede da sala. Cada poro meu expele a ideia que surgiu. O pensamento levanta da cama altivo, decidido. Sei que vou à sala. Abro a porta e explodo em cores de Almodóvar.

São Paulo, primavera de 2008

terça-feira, 28 de junho de 2011

Em defesa da religião (ou contra o fim da moral cega)

para V. Cassio (do Canto em Silêncio)

Sem rodeios. Há dois nomes que quero citar e discutir neste texto: Jair Bolsonaro e Myrian Rios. Tais nomes dispensariam a necessidade de se apresentar o assunto polêmico a que me ponho a discutir, mas vá lá: o peso do discurso religioso na fala e na figura desses sujeitos.

Jair Bolsonaro, Myrian Rios e Cristinanismo. Penso que a relação entre estes termos é bastante evidente para quem estiver acompanhando os assuntos da mídia. O que não deveria ser. Mas, pelo fato de ambos deputados irem à grande imprensa como representantes do povo - e de deus - e valerem-se de sua opção religiosa para posicionarem-se contra ações legais que visam ao combate da homofobia, acabamos por associar suas opiniões às opiniões dos religiosos em geral. O maior problema, todavia, não é a opinião do sr. J. B e da sra. M. R. (dadas sob a luz da democracia e referendadas pelo direito à livre expressão) estarem associadas a grupos religiosos. O problema é quando os religiosos posicionam-se a favor dos deputados, como se estes fossem porta-vozes da massa cristã que prega amor ao próximo e defesa da família.

Àqueles que seguem a doutrina cristã e, mesmo assim, apóiam J. B. e M. R., falta um pouquinho de reflexão sobre a história da religião que seguem. O cristianismo era uma religião de escravos. Os hebreus fugiram do Egito. Os seguidores de Cristo eram perseguidos pelos romanos. Ora, isso já é o suficiente para qualquer cristão encolher o dedo em vez de apontá-lo acusadoramente. Um povo que sofreu com perseguição e a não aceitação de sua opção religiosa deveria ter como princípio básico a aceitação de qualquer fé ou de qualquer diferença que possa gerar uma perseguição semelhante ao qual foi submetido. Não está escrito na bíblia, mas poderia estar presente no coração de todos os seguidores desta doutrina.

Ademais, uma religião (aqui entendida como conceito e não como instituição social) baseada na ideia do amor ao próximo e cujo maior martir é um homem que morreu, dizem, para salvar a humanidade (mas que, na verdade, morreu por pregar valores que iam contra os preceitos do Império Romano), deveria opor-se a toda e qualquer forma de discriminação. Outra coisa que poderia estar na bíblia. E, se pensarmos bem, é o que a vida de Cristo suscita: judeu que foi mandado à cruz pelo seu próprio povo, andarilho que tinha atrás de si pobres, doentes, prostitutas (e disse, certa vez, sobre uma: "atirai a primeira pedra aquele que nunca pecou"), santo que nunca atribuiu a si os milagres que os outros diziam que ele fazia (preferia dizer: "vai. Tua fé te salvou.").

Mas temos os Bolsonaros e as Myrians Rios. Que falam em nome de uma religião e atacam os indivíduos que, diferente dos religiosos, não escolhem o tipo de desejo sexual ao qual estarão sujeitos. Que proclamam defender uma moral (família ideal, boa conduta, direito à propriedade, à liberdade de expressão) só existente no pensamento cristão após as revoluções burguesas (Revolução Francesa e outras). Estes Bolsonaros e Myrians Rios só mancham ainda mais a imagem da religião cristã. E o problema é que não encontrei, até este momento, cristãos dispostos a defender sua imagem, mas muitos que engrossam o coro dos deputados. Eu, ateu que sou, mas inspirado por um texto de um amigo (http://cantoemsilencio.blogspot.com/2010/10/sobre-politica-e-religiao.html), tento defender o uso da religião como instrumento a favor da equidade entre as pessoas (evito propositalmente a palavra igualdade, já tão desgastada nos discursos destes políticos não entendem a lógica do direito à diferença), ainda que as leis da probabilidade não me permita dar crédito a essa possibilidade.

Democracia. Direitos Iguais. Liberdade de Expressão. Tais palavras são erigidas como as aspirações máximas do Estado. Todo mundo fala o que quer e esconde-se atrás desses termos, alegando que tem direito à opinião. Mas, e quando essa opinião só beneficia aquele que a tem (e ao grupo do qual sua opinião é reflexo) e condena os demais? A mim fica patente uma falha moral: importar-se apenas consigo ou com os seus em detrimento dos demais. Para quem pensa somente em benefício próprio é preciso lembrar: ser livre exige responsabilidade. Exige olhar qualquer questão sem os pré-conceitos já sedimentados. Exige, sobretudo, que se reflita e saiba distinguir a origem de seus próprios pensamentos, de sua própria conduta, pois estes, ainda que pareçam frutos de sua brilhante capacidade humana, são reflexos também da sociedade em que o indivíduo está metido. Ser livre é perder a ingenuidade. O sujeito que cumpre essas exigências está apto a dar sua opinião. Se ele existir, suponho que prefirirá manter-se calado.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Solidão em São Paulo: "Estamos Juntos" ou tema bom para um filme ruim

Muito se fala sobre a solidão nos grandes centros urbanos. Parece que morar em uma metrópole significa estar solitário, viver sozinho em meio a multidões de rostos sem nome. Tal contradição junta-se a outra: ainda que com muitos conhecidos em inúmeras redes sociais, o sujeito não consegue comunicar-se de maneira efetiva com o outro, seu semelhante. É como se faltasse algo. E, para compensar a falta, multiplicam-se as possibilidades de diversão: bares, bailes, festas, shoppings, cinemas... A aglomeração de gente dilui os solitários numa massa multiforme.

Este é um dos temas do filme "Estamos juntos" (Toni Venturi, 2011). Tema deveras interessante, o que daria, no menos, um filme poético. E o filme do diretor de Cabra-cega tenta ser: o uso (excessivo) do plano-detalhe, os movimentos rápidos de câmera, a montagem opondo dois mundos paulistanos. São propostas estéticas que, no contexto do filme, acentuam a temática da solidão e da incomunicabilidade. Se tais recursos estivessem associados a uma estória menos óbvia, talvez o filme fosse melhor. Contudo, o grande problema de "Estamos Juntos" é explicitar de todas as formas - da montagem ao roteiro - o tema e a opinião do diretor. A começar pelos personagens: Carmen, personagem vivida pela atriz Leandra Leal, é uma médica solitária, que sai nas noites paulistanas com seu amigo Murilo (Cauã Reymond) e vive aventuras sexuais com Juan (Nazareno Casero), amigo daquele. Nas madrugadas, ou durante os banhos, costuma bater papos filosóficos com um homem misterioso, que mora em seu apartamento. A própria cidade é outra personagem na trama, talvez a mais importante: metrópole de profundos contrastes sociais, a engolir sonhos de uns e regurgitar de outros.

São Paulo revela-se logo na sequência de abertura: um plano geral sobrevoa a cidade e seus contrastes; ao fundo, uma trilha sonora melodramática misturando violino e música eletrônica. Aliás, a trilha é o elemento que mais incomoda: o som do violino dá ao filme a cor de um tango argentino. Daí somos apresentados à personagem de Leal, a médica que salva vidas mas que não tem ninguém que lhe salve. Ou melhor: não consegue abrir seu mundo para que as pessoas possam entrar e salvá-la. E a salvação é necessária, pois a moça está doente, não tem parentes na cidade e é incapaz de pedir ajuda. Com ela, apenas o misterioso homem a falar sobre céus invertidos e fazer-lhe massagens e picotes no cabelo. Carmen está entre os dois mundos representados no longa: o mundo fútil da burguesia cheia de si e afoita por preencher o vazio de alma, e o mundo dos pobres e oprimidos que vêem na luta por direitos básicos o motivo da existência. O tom humanista é mais do que patente: anuncia-se a cada quadro, realçado pelo desespero crescente da personagem central. E, como receita para a solidão, a incomunicabilidade e o vazio de sentido na vida, o filme sugere a ajuda ao próximo, o estabelecimento de relações fraternais.

Talvez seja este o aspceto mais decepcionante do filme, ao menos para mim: explicitar que, se há uma possibilidade de construção de sentido para a vida, é a luta ao lado do oprimido. Os dramas do pobre são maiores que os dramas individualistas dos ricos, o filme parece dizer. O problema não é passar esta mensagem; o problema é gritá-la por todo olonga. Filmes como o "Linha de Passe" (Walter Salles) ou o recente "Bróder" (Jefferson De) adotam um tom humanista sem precisar fazer alarde, como o "Estamos juntos" faz. E se a ideia era falar da solidão e da incomunicabilidade entre os homens, um anjo e uma trapezista (Asas do desejo/Himmel über Berlin, Wim Wenders, 1987), uma adolescente japonesa muda, um casal americano e imigrantes mexicanos (Babel/Babel, Alejandro González Iñarritu) ou ainda um nerd que cria uma rede de relacionamentos por que não consegue se relacionar (Rede Social/Social Network, David Fincher, 2010) cumprem melhor com o objetivo do que uma médica com esquizofrenia que salva vidas mas não tem salvação.

Explicitez. Obviedade. Poderiam ser qualidades. Neste caso banalizaram o que poderia ser uma boa estória sobre a solidão e a solidadriedade em São Paulo.


créditos das imagens (na ordem em que aparecem): 1) cartaz do filme "Estamos Juntos"; 2) cena de "Linha de Passe"; 3) cena de "Bróder"; 4) cena de "Asas do desejo"; 5) cena de "Babel"; 6) cena de "Rede Social"








quarta-feira, 27 de abril de 2011

EM HOMENAGEM À CRIS

O futuro é um vento a soprar incessantemente contra o nosso corpo, trazendo não sei de onde presentes com os quais vivemos e nos habituamos. Caminhamos contra este vento erguendo minimamente os pés, para não sermos também levados. Dos muitos presentes que são arrastados pelo vento, tentamos reter aquilo que nos apraz, segurando-os com a força de mil titãs que não somos. Alguns presentes se soltam e, quando olhamos para trás, vemo-os perderem-se no Nada, um não-lugar só existente na memória. Na nossa memória.

Já agarrei livros. Também agarrei ideias, mas estas, tão inconstantes e arredias, escapavam-me assim que eu supunha tê-las domado. Outro dia tentei agarrar uma tarde de outono. Infelizmente as horas, serventes do vento, levaram minha tarde embora.

Às vezes desequilibro-me; o vento, eterno, me leva até eu ser agarrado por alguém. Às vezes sou eu a agarrar: amores e amizades que alimentam nossa vida. Uns e outros são os que mais dóem quando o vento nos arranca. E são, paradoxalmente, os que mais valem a pena serem agarrados. Muitas vezes o desejo de permanecerem juntos é mútuo. Então multiplica-se a força e, mãos dadas, caminhamos contra o vento, conquistando e repartindo novos presentes.

Agarro meu amor e meus amigos. Em corrente, lutamos contra o soprar. Não nos iludamos: haverá levados pelo vento, outros que serão trazidos. Estes não sabemos quem são até que cheguem. Aqueles vão para os confins da memória, viver na retina de nossos pensamentos. E não podemos fazer nada contra o que já foi e o que há-de vir.

Sem a certeza do que vem e do que vai, me agarro a eles: ao meu amor e aos meus amigos, à minha amiga Cris, a quem dedico estas palavras. O importante é que neste momento estamos juntos, lutando contra o vento para permanecermos assim. O resultado, quando o vento trouxer, não será mais importante do que os passos dados, "alegria de caminharmos juntos, lado a lado, por amor".

Parabéns, minh'amiga Cris!!! A você único presente que não pode ser trocado ou transferido: estas palavras.


terça-feira, 26 de abril de 2011

HERÓIS, SEGREDOS E HIATOS

Alguns a chamavam Índia – e ela realmente parecia: cabelos negros e lisos, pele vermelha, como que dourada ao sol. Era bonita. Não sei se a mais bonita da escola mas, para mim, era o maior encanto da sala.

Sobre o corpo? Acho que não olhávamos muito para corpos naquele tempo. O que mais encantava era o rosto tenro, o olhar suave, a voz macia. Pelo menos eram estes os atributos que justificavam os desejos que acometiam ao J.H. e eu.

Passamos o ano inteiro a nutrir tais desejos, sem a coragem necessária para expô-los a quem era o objeto deles. O insaciável tempo engolia os nossos dias de infância, sem que déssemos conta. A pouco e pouco o ano findava, as aulas acabariam e todos nós só nos encontraríamos na futura quarta série. E o desejo, a paixão? Levá-la para o ano seguinte? Não. O que era da terceira deveria ser resolvido na terceira.

O J.H. e eu combinamos a data: a nossa festa de confraternização. Faríamos isso juntos, pois éramos amigos. Decerto que brigávamos, deixávamos de nos falar, mas por pouco tempo. Era só ele chegar com um novo exemplar da revistinha que líamos e, então, as rixas estavam resolvidas.

Estranha esta relação. A revistinha vinha a calhar, sempre. Eu não podia comprá-las, de modo que a única oportunidade de conhecer melhor os meus heróis prediletos dos desenhos da TV era dar o braço a torcer e fazer as pazes com o J.H. Não era um gesto heróico. Ou, pensando bem, devia ser o mais honrado dos gestos, cheio da humildade que compete a um herói. É verdade que a revistinha, em si, não era o pomo da concórdia, mas sim uma frase que ele me dissera, provavelmente aprendida com sua irmã, dada à filosofia barata: “a amizade pode ser uma vírgula, mas nunca um ponto final”. Era isso que trazia comigo, e ainda trago hoje, quando o insaciável tempo devora os dias da maturidade.

Cheguei cedo à nossa festa de confraternização. O J.H. não havia chegado, e não chegaria. Mas ela estava lá, com o mesmo rosto, olhar e voz. O terreno já havia sido arado antes: plantamos enigmas que seriam colhidos neste dia. Ela queria saber de quem gostávamos. Imagino que a vaidade feminina já devia ter concedido a resposta a ela; no entanto, enquanto não revelássemos o nome, com todas as suas seis letras, ela não sossegaria.

Metade de minha coragem havia faltado. Não sei se conseguiria falar para ela a impossível verdade. Mas foi prometido, muito embora ela, subitamente, tivesse deixado de se importar com o segredo tão bem guardado; não perguntava, nem queria saber do assunto. Pode ser que essa atitude é que tenha trazido à tona uma coragem muito maior do que eu supunha ter. Quando se tem certeza da derrota é que pomos a derradeira esperança na última cartada. Às vezes dá certo. No ano seguinte eu não voltaria a falar com ela por vergonha. Também não voltaria a falar com o J.H. A nossa amizade, já tão intermitente, já tão cheia de vírgulas, ganharia reticências e, dali, um grande hiato se formaria até os atuais dias.

Encerrou-se a festa e todos foram embora; ela subia as escadas que levavam para a rua. Corri, desesperado, chamei-a – Elaine! – ela parou. – Sabe de quem eu gosto?

- De quem? – era um riso que eu via ali?

Respondi. Ela fez um gesto de descaso, como se o que eu acabara de dizer fosse brincadeira. Virou-se, atravessou a rua e foi para suas férias. Naquele instante eu estava feliz, pois minha coragem me igualava aos meus heróis. Voei para casa a fim de pegar o episódio do dia.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

ROUPAS NUAS


As roupas são tristes:

Vestem os homens,

completam-lhe o sentido, a vida,

mas são tristes. Tristes.

Cobrem o recém-nascido,

rotulam e enquadram.

Enchem mulheres,

criam formas, formam máscaras.

Unem-se aos corpos

entregam-se a pele na tentativa de existir.

Mas são vazias. Tristes.

É nesta solidão que se encontram, as roupas.

Sozinhas, são roupas, apenas,

e a tristeza lhes pertence.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

A vida, o Universo e Tudo o Mais

Vídeos mostram suposto óvni em Israel e geram polêmica na internet

http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/efe/2011/02/16/videos-mostram-suposto-ovni-em-israel-e-geram-polemica-na-internet.jhtm







Acho que estou lendo demais Douglas Adams...

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

CARTA AOS MEUS ALUNOS*

* Tania Macêdo, professora de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da Universidade de Sao Paulo


Muitas vezes, quando em minhas aulas as utopias são referidas (Revoluções africanas, o 25 de Abril, por exemplo), o desdém preenche a sala, seguido de um desânimo que, uma vez, foi verbalizado por um aluno: “Isso tudo ocorreu há tanto tempo! Hoje somos diferentes, estamos em outro momento. Não acreditamos mais em nada, não queremos saber de nada”.

Longe de ler essa resposta como um conflito de gerações, tomo-a como indício da situação em que o capital, com a sanha consumista, traduziu-se na rapidez dos relacionamentos, das “amizades” que se formam ao toque de uma tecla que leva ao Facebook ou ao Orkut e se desfazem com a mesma facilidade, à torrente de informação e à pobreza de experiências, que conduziram à descrença, ao imobilismo e aos finais de semana regados a ecstasy e outros “paraísos artificiais”.

Será realmente impossível acreditar?

Escrevo-lhes porque uma série de acontecimentos recentes apontam para o florescimento do comunitarismo que sobrepuja a subjetividade auto-centrada, a “ego-trip” e o imobilismo.

Falo, é lógico da Revolução do Jasmim e do que se passou no Egito nos 18 dias entre 25 de janeiro e 11 de fevereiro de 2011. Para muitos são apenas notícias de lugares distantes, daquelas que inundam a sua sala de visitas a partir da luz bruxuleante das televisões.

Esperem! Tenham um pouco mais de paciência. Esses acontecimentos merecem muita, muita atenção.

Que tal iniciarmos como uma personagem de Luandino Vieira que diz: “É preciso dizer um princípio que se escolhe: costuma se come­çar, para ser mais fácil, na raiz dos paus, na raiz das coisas, na raiz dos casos, das conversas.”?

Então, podemos dizer que tudo começou com um ato desesperado de um jovem tunisiano, Mohamed Bouazizi, que não podendo mais sustentar sua família com a venda de frutas na rua, confiscadas por policiais corruptos, ateou fogo ao próprio corpo em protesto. Outros jovens entenderam o significado do ato e a partir de movimentação intensa, tomaram as praças. Se foi o desespero que impulsionou o movimento, a comunicação entre os seus participantes foi bem ao gosto de vocês: pelos celulares, computadores, IPods. E houve canto, e houve rezas, mas também gás lacrimogêneo, pedras, tiros e mortes. Muitas mortes. Não nos iludamos, pois as mudanças de fato cobram o seu salário em sangue.

E o ditador da Tunísia, Bem Ali, apesar de apoiado pela França, Espanha e Itália, não resistiu à pressão dos que saíram às ruas e caiu.

Mas quando se sente o sabor da liberdade e se tem consciência da força do coletivo, não é possível parar. Foi então a vez do Egito. Dezoito dias da massa enfrentando tanques e a pressão internacional de países como Estados Unidos e Israel.

E se Obama, no primeiro momento disse: “Mubarak é um bom homem. Ele fez coisas boas. Manteve a estabilidade. Continuaremos a apoiá-lo porque é um amigo”, teve depois aceitar a derrota que a população egipcia lhe impôs, porque a Praça Tahrir se encheu cada dia mais. E como na Tunísia, houve luta, orações, cânticos e mortes que derrubaram o ditador Mubarak o qual, com seus acordos de paz com Israel, permitira que se fechasse a faixa de Gaza, condenando o povo palestino à mais aviltante miséria.

No momento em que lhes escrevo Iêmen e Argélia começam as manifestações.

Prestem atenção.

Uma corrente de crença e ação se alastra. Os seus elos mais fortes são jovens como vocês: com a mesma vontade de dignidade, emprego e felicidade.

Pensem nisso quando lhes pedirem para participar de um Ato Público, assinar um documento pela melhoria do ensino ou discutir sobre os problemas da Universidade e da nação.

Lembrem, um pouco só, do texto de Luandino que lhes citei acima e que também diz: “Os pensamentos, na cabeça das pessoas, têm ainda de começar em qualquer parte, qualquer dia, qualquer caso. Só o que precisa é procurar saber.”

Procurem, ao menos, saber. Depois fica mais fácil agir.

Tania Macêdo


créditos da fotos:

1. não especificado

2. Martin Bureau, AFP

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Quadro Futurista, por A. B. S.

"'Cause everybody hurts

Take comfort in your friends"

R.E.M

Vejo-os sentados em umas tantas mesas de bar, juntas, aproximando as vontades, a bebida, a alegria. O garçom, conhecido já, traz o cardápio, anota os pedidos, embaraça-se com a bandeja e a falta de espaço.

Todos riem. Chamam-se. A infância retorna em brincadeiras, mas é logo afastada por um gole de vodka; crescemos todos afinal. O futuro é comemorado, os sonhos de um porvir são transformados em gritos de guerra. E há uma alegria triste no riso de alguém, a quem chamaremos Australiano. O riso sincero, revelador de sua personalidade acanhada, abre-se para dentro da alma, revelando-lhe um deserto de segredos guardados no coração encoberto de timidez e solidariedade. O maior segredo está sentado a alguns amigos de distância, os olhos buscam-no furtivamente, depois escondem-se em um copo de cerveja, vergonha da ousadia que tiveram. Vejo a mágica antiga do amor bonito, não há outra palavra, dos primeiros tempos, do alfa da adolescência, tempo de descoberta daqueles que não se encontraram na vida, da poesia fácil entornada sobre o papel, das maiores dores do mundo, porque o mundo é do tamanho do nosso coração, e nosso coração é só o amor que temos.

O mundo é outro, agora. Há o álcool, a volúpia o escárnio. As mesas acumulam copos esvaziados, desejos que bebemos, brindes que levantamos. Ao futuro. O Australiano talvez tema, o futuro sempre leva quem queremos que fique, amaldiçoando-nos com os piores encantamentos: o presente vira passado; o desejo, saudade; o apego, distância. O garçom retorna, novos pedidos, alguns querem que eu beba para destravar a língua. Alguém, cujo codinome será Felina, incita às brincadeiras, chama sempre ao Australiano, e depois aos outros, tantos, nas mesas cheias. Mais vodka, mais risos. Desenha-se no ar uma linha ligando ele a ela, será coisa da minha cabeça?, uma espécie de muda comunicação, que todos perceberam, tanto é que alteramos a configuração dos presentes. Um pede para que Felina ocupe seu lugar, próximo do Australiano. Ela refuta, consciente das intenções. Outro oferece ao Australiano uma cadeira próxima de Felina, ele ri, mas não sabe, ou talvez não queira, recusar a chance de estar próximo uma vez mais, quem sabe a última, dela.

Juntos, então, a Felina e o Australiano arriscam-se nos passos, desajeitados os dele, decididos os dela, de uma canção conhecida por todos. O ritmo não coincide com os corpos próximos, quiçá os corações dancem uma música que é só deles, ainda inédita, mas já ensaiada de alguns meses. Ou sou eu quem a estou compondo, a partir de fragmentos desta realidade que insisto em selecionar, para não me ver a mim, solitário entre muitos, alma cinza em meio ao mundo multicor.

As mesas se enchem de uma esperança tênue, leve, suave aos ouvidos. Cantamos. As alegrias culminam em uma dose de tequila. À Felina, ao seu futuro. E, como gesto a eternizar o momento, que por si só já seria inesquecível, um beijo, terno, amigo, em todos os presentes. Talvez o coraçãozinho do Australiano tenha dado um pulo no peito: os olhos bebem gulosamente um copo de qualquer bebida, enquanto o beijo percorre mesa a mesa, como um lastro de felicidade ascendente. A ele o gesto corrente significaria muito mais do que a amizade, o reconhecimento por parte dela pelos ombros, pela confiança depositada durante os dois anos de intensa batalha em busca dos sonhos, do futuro.

Ninguém sabe o que nos aguarda depois da linha do horizonte. As futuras etapas da vida poderão trazer outras pessoas e caminhos. Um novo amor pode estar ali, de jaleco branco, aguardando a Felina para um chopp. O Australiano talvez pense nisso enquanto, no final da mesa, aguarda o ingênuo beijo. Eu tento, preciso não enxergar o instante com o excesso de romantismo que sempre brota em mim, ainda que eu o sufoque com doses cavalares de Radiohead e niilismo. Só mais um pouco: ela precisa voltar, retornar ao ponto de partida, agora o fim, para alcançá-lo, o último. Em pé, a Felina inclina-se para sorver dos lábios dele uma ínfima demonstração dos desejos acumulados durante anos. Ela não sabe disso. Ou talvez saiba, estou de fora e o que faço é apenas encher o momento de paina agridoce. Sou feliz nesta fantasiação momentânea, quando o meu real é inventado para ter um sentido maior do que realmente tem.

domingo, 9 de janeiro de 2011

De Homens e Deus

Um dos meus maiores desafios quando da adolescência foi vencer certos impulsos os quais exigiam que eu combatesse veementemente tudo aquilo que eu julgava não ser a verdade – aquela cujo sentido transcendental que gostamos de lhe atribuir transborda de todas as suas sete letras. Se cristão católico, queria converter todas as almas perdidas pelo mundo; se religioso sem religião, queria que todos pudessem enxergar o deus que se manifesta na vida, na natureza, no menor detalhe (quer dizer: quem gosta dos detalhes é o diabo...); se ateu revoltado, queria derrubar todas as teorias sobre a existência do divino, apontar todas as falhas das escrituras sagradas.

Foi difícil encontrar em mim um ponto de equilíbrio, equalizador de ânsias tão juvenis – inteiramente justificadas pela tenra idade e casmurrice de quem as sentia. Encontrei-o, pois. O ateu que sou hoje não quer converter almas ao ateísmo, ou mostrar que não existe mais do que reações químicas ou forças físicas na vida, na natureza, nos detalhes, tampouco preocupa-se em divagar sobre teorias ou esmiuçar textos antigos buscando incongruências. O que restou daquela convicção da mal nascida juventude, quando esta ainda confundia-se com a inocência infantil, foi algo de maior valor do que a crença que se perdeu: o entendimento e aceitação da importância desta crença para o ser humano e para a humanidade. Há-de se entender que, mais importante do que a existência ou não de deus, é o valor que este conceito de ser divino tem para a sociedade. Tal conceito é norte para quem se encontra à deriva, baliza que indica os movimentos de quem a segue, ancoradouro para quem precisa descansar.

E não há quem, em algum momento, não esteja à deriva, ou à espera de uma ordem, ou precise de descanso. Nem todos, porém, apóiam-se no conceito de deus. É de se imaginar que estes devam sofrer, e muito, as conseqüências da descrença. O que deve se sentir quando se olha para “um céu tão longe/um deus tão longe/ou, quem sabe/para um céu vazio”? Parece óbvio, mas ninguém em sã consciência escolheria o caminho do sofrimento, desespero e desamparo. Não se trata, contudo, de uma simples escolha. Ninguém acorda de manhã e diz: “hoje estou com vontade de ser ateu”. É um processo que se dá no inconsciente, demora para ganhar forma. Até que esta crença – corrijo: ausência de crença – receba um nome que a distinga e a conceitue, muita coisa se passou: primeiro cai a religião, depois a religiosidade e, por fim, o transcendente, ou seja, aquilo que paira no ar e, por não sabermos explicar, damos-lhe o nome de deus. Decerto, é um processo moroso, que exige grandes transformações em quem o sofre. Perdem-se os pontos de referência, anos e anos de valores inculcados são dolorosamente lançados por terra, uma liberdade sombria e solitária assoma lentamente no horizonte, até invadir, por completo, o ser, como as primeiras rajadas de ar em um pulmão que se desabituara a respirar. E, então, outro longo processo se inicia, em busca de novos pontos de referência, outros valores – os quais podem ser os mesmos de antes, sem, contudo, a inconsciência de outrora – novas prisões. E este novo ser, a quem costuma-se designar pelo nome de ateu – mas que é muito mais (ou muito menos) do que não acreditar em deus – vai viver num mundo não de cegos, mas de pessoas que vêem demais.

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Afirmar-se ateu numa sociedade enraigadamente religiosa tem status de profunda leviandade, quase um crime – ou crime inteiro, para religiosos extremados. É mais fácil aceitar que se mate em nome de deus, mas não que se viva sem ele. Talvez o maior dos dogmas, compartilhado pela imensa maioria das religiões ocidentais – falo, sobretudo, das que possuem certa ligação com o cristianismo (ou, melhor dizendo, com as quais este se conecta), pois fui criado nela – dizia: o dogma comum a grande maioria das seitas religiosas ocidentais talvez seja a de que a vida humana, e todas as vidas, pertencem a um ser superior, a quem devemos prestar contas num hipotético juízo final. Se matei ou morri, se roubei ou ofertei, tudo me será cobrado. E, quem sabe (sendo eu o assassino ou o ladrão), no derradeiro momento, no último arfar do peito, eu possa ativar minha fé neste ser e arrepender-me. Estarei salvo – salvo se meu arrependimento for verdadeiro. Desfrutaria da glória eterna, ao passo que o ateu, por não ter do que se arrepender – na hora da morte, digo – perde-se no fogo ou no mármore do inferno, junto daquele em quem acreditou tanto quanto em deus.

Não quero eu dizer que ladrões e assassinos não mereçam perdão eterno, até mesmo por que, sendo ateu, não acredito na salvação. O que coloco em questão é a forma como nós, seres humanos, hierarquizamos pecados e estabelecemos condenações. Isso em nome de deus. E nesta calçada da fama dos crimes a maior falta não é atentar contra a vida, concreta e palpável, de meu semelhante, mas contra a crença, abstrata e informe, do divino. Não esqueçamos o primeiríssimo mandamento: amarás a deus sobre todas as coisas. E amamos. Por isso é mais fácil aceitar jihads e cruzadas, fogueiras e torturas, atentados e invasões. Feita em nome de deus, qualquer ação ganha um quê de sagrada, na medida em que os argumentos que a sustentam são de outra ordem, outro mundo, embasados pelo senhor.

É verdade que, hoje, repreende-se quem mata em nome de deus. Este não quer isso de nós, é o que dizem. Contudo quer que aceitemos a si como verdade única, suprema, independente da seita seguida. Quer ser amado, sobre todas as coisas. Por que ele é o provedor de nossas vidas. E o único que poderá dar cabo delas.

É preciso pensar um pouco nesta natureza divina de ser o alfa e o ômega da vida humana. Quisesse eu ser um mero fazedor de polêmicas, diria que qualquer assassino, por mais que sua alma seja dada ao prazer de exterminar seres de sua espécie, só poderia fazê-lo com o consentimento de deus – o que me faz imaginar quase automaticamente um departamento no paraíso responsável pela emissão de concessões de assassinato, cheio de anjos trabalhando até a exaustão para dar conta dos pedidos. Não: deus não é culpado de todas as mortes. Se quiséssemos ainda manter seu poder de pôr fim à vida humana, teríamos que lhe dar o título de co-partícipe delas. Mas nem isso.

Não isento-o da culpa por conta da falácia do livre arbítrio – argumento assaz curioso, ainda que de pouca eficácia retórica, rebatido facilmente com a outra face da mesma moeda, bastaria dizer: quem foi que disse que queríamos ser livres? –. Deus é inocente porque não compete a si a responsabilidade de pôr termo às vidas humanas. Estas chegariam ao fim à revelia de sua vontade. Culpemos, sim, a natureza, a qual se vale de várias maneiras – dentre elas a mão humana – para dar cabo da existência de tudo quanto nela habita.

A natureza é culpada, sobretudo, pelas milhares de mortes em desastres naturais – aliás, este tem sido o principal papel que a natureza vem desempenhando, neste filme em que o homem é o diretor. Destas mortes deus nunca é culpado, antes é responsável por umas tantas vidas que se salvam. Ou seja, atribui-se a ele o milagre da vida que não se perdeu e à natura a tragédia pelas que se foram. Imaginemos como ficaria a face de deus se o ômega fosse de sua alçada: que justiça haveria em manter a vida de uns e ceifar a de muitos outros? Decerto que recorrer-se-ia rapidamente a outra falácia – a de que os desígnios de deus são inescrutáveis. Essa possui maior eficiência retórica, malgrado possa ser considerada um golpe baixo. Ora, é fácil esconder-se atrás de um “cala a boca que eu sei o que estou fazendo”, do que explicar-se diante de uma multidão em choro e desespero uníssono a clamar “por quê? por quê meu deus?”. Definitivamente, se detivesse nas mãos a foice derradeira, deus ficaria em maus lençóis.

Em outras palavras, se se quer manter a imagem de deus, ou melhor, se se quer acreditá-lo como uma figura do bem, deve-se livrá-lo da responsabilidade pela morte na Terra. Contudo, o alfa e o ômega são indissociáveis, como faces da mesma moeda, de modo que, se deus não for responsável pela morte, também não o é pela vida. Ademais, seria injusto com a natureza dar a deus as palmas pelo milagre da vida e a ela as vaias pela malvinda morte.

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Fixemos-nos na seguinte afirmação, a princípio inquestionável: a vida é um milagre, o bem maior. Deus, provedor dela, é portanto o ser supremo a quem devemos prestar contas do milagre que nos foi confiado. Talvez devêssemos perguntar se esta dádiva a nós pertence ou, como o quis sugerir, é-nos somente emprestada. Indo por este caminho, poderíamos questionar, ainda, por que nos foi fiado tão maravilhoso milagre e o que devemos fazer com ele. Há quem vá dizer – e sempre é bom lembrar que falo de cristãos, para cristãos e como cristão, independente de ser ateu – que a vida que vivemos foi escolhida por nós antes de nascermos. Assim, qualquer percalço no decorrer dela não tem outro culpado senão nós mesmos. Outros, por seu turno, dizem que a vida nos foi dada por deus para que possamos adorá-lo e glorificá-lo. Seja a vida uma escolha para o contínuo evoluir da alma ou para a glorificação do senhor, não podemos ordenar um vita fiat humanae e criarmos a nós mesmos. Só deus pode fazê-lo, por que a vida pertence a ele, cabendo-lhe, então, responsabilidade parcial ou total pelo que com ela fizermos. Ainda quererão impor o livre-arbítrio para responsabilizar apenas o homem, ao que perguntaria: o homem também escolheu ter o livre-arbítrio?

O conceito do livre-arbítrio opera consoante a afirmação de que a vida é um milagre, pertence a deus, mas que podemos fazer o que bem entender dela. Mas se para mim ela não for um milagre, antes um fado pesado a carregar, ou apenas vida, sem metafísica, como deve ser a muitos outros animais? Meu livre-arbítrio permite-me não viver, ou, vivendo, matar-me sem nenhum pingo de culpa por atentar contra um bem que não me pertence, mas que foi dado à revelia de minha vontade? Por ser tão arraigado em nossa sociedade que viver é bom, esquecemo-nos de relativizar as coisas e achamos que todo ser humano deve aceitar isso como uma verdade absoluta e inquestionável. Os suicidas já têm lugar garantido no inferno, mesmo que o desapego pela suas vidas não seja culpa deles, mas do deus que queria ser adorado e glorificado. Ora, se o livre-arbítrio é do sujeito, e se ele tem uma existência não corpórea antes de assumir uma forma física, por que viver se o fim último seria atentar contra a própria vida? Para voltar numa próxima carregando mais um fado? Ou, se deus assim quis que o suicida viesse à luz, sem vidas passadas ou futuras, sabendo, o deus, pela sua onisciente cabeça, que aquele poria fim à própria vida, por que não lhe deu o livre arbítrio antes da existência, quando era ainda um pensamento na mente divina? A mim, dar vida a quem não quer viver parece-me coisa de deus egocêntrico, ou, palavra melhor, egoísta. Evidente que a imagem de deus-egoísta não é a melhor para o ser supremo. Portanto, assim como a morte não é de responsabilidade divina, a vida também não o é. Atribuir-lhe este ou aquele encargo é pôr em suas mãos a culpa por toda ação humana.

Nascimento e morte são os dois extremos da vida, sendo a morte a única certeza e, quem sabe?, o único sentido da existência. Nascemos para morrer, e aí já teríamos uma possível e não unívoca resposta para a filosófica e incômoda pergunta a assolar o espírito humano: por que estou vivo? Por que estou aqui? Deus surge indiretamente como outra resposta provável. Deus quis. Deus quis que eu nascesse em um país cristão e, portanto, educado segundo os valores cristãos. Minha vida devo a ele. Do mesmo modo, um jovenzinho nasceu na montanha mais longínqua de uma aldeia no Tibet, por que deus quis, e morrerá nela, sem nunca ter ouvido falar em Jesus Salvador, ou mesmo em deus criador, por que foi educado em uma filosofia que não prega a existência de uma entidade suprema a criar e destruir vidas. Porventura até poderia ter tido um diáfano contato com um cristão que levou a cabo a ordem da pregação do evangelho; todavia, sua história, sua cultura, seus valores não o permitem dar crédito ao reto cristão pregador, da mesma forma que eu não aceito nenhuma das quatro verdades absolutas pregadas por qualquer dalai lama. Em outros termos: ou deus é injusto por não dar condições iguais a todos para que cheguem, ou não, à sua morada, ou é pretensão cristã achar-se verdade inquestionável e assente em toda e qualquer parte do planeta – quem sabe, do universo.

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Quero, na verdade, chamar a atenção para a construção, feita durante séculos pela racionalidade humana, da imagem divina. Esta é, no menos, ambígua. Um deus que ama, mas que pede sacrifícios a torto e a direito – sempre de sangue. Que hasteia bandeiras de guerra – e vence, independente do lado vitorioso. Que cobra exclusividade, condenando uns tantos inocentes, cuja única falta foi não ter nascido em berço cristão, ao inferno. Mas a maior contradição se dá quando contrastatado com a figura de seu hipotético filho, Jesus. Lembremos uma vez mais o primeiro mandamento, e o que ensina este a que chamaram Messias: amai a teu próximo como a ti mesmo. É fato que ambas as inscrições não entram em conflito; entretanto, pensar uma trindade em que uma terça parte cobra atenção total enquanto as outras, humildemente, incitam o amor fraterno, sendo todas as partes iguais (mas ao mesmo tempo diferentes) é bastante complicado.

Pensemos nessa existência trina: aquilo a que os católicos chamam de dogma da santíssima trindade traduz com perfeição essa essência primordial no mínimo ambígua que é deus. Pai, filho e espírito santo são um, o mesmo, e diferentes. O primeiro pedia sacrifícios, como os deuses do panteão grego; o segundo, talvez pelo seu caráter revolucionário (permito-me a anacronia do termo em se tratando da figura de Jesus, mas acho que ela é válida), contesta em muitos aspectos as decisões do pai, ainda que prefira não entrar em conflito com ele; o terceiro, por fim, é o espírito colúmbeo que paira sobre o ar – e dirá o poeta Alberto Caeiro: “a única pomba feia do mundo/ porque não era do mundo nem era pomba” –, confortando os mortais, abrandando-lhes as dores: é a fatia de deus que se permite entrar em contato com o ser humano. Ora, qualquer leigo verá que são personalidades infinitamente distintas, até contraditórias, em coexistência perfeitamente harmônica na mente humana. E não questionamos.

Até seria válido aplicar aqui o conceito de “duplipensar” utilizado por George Orwell em seu 1984: ao pensar algo, penso imediatamente o oposto do que pensei, e convivo em perfeita paz com os dois pensamentos, ativando um e outro de acordo com o momento. Contudo, não é preciso recorrer à literatura para explicar algo que é passível de entendimento a partir da história. O cristianismo incorpora e ressignifica valores do judaísmo, que são notadamente diferentes dos preceitos cristãos. O que muda com o advento desta nova religião é a personalidade de deus pai, fazendo-nos conviver com duas idéias diametralmente opostas: o ser severo de antes, que pede o filho de Abraão em sacrifício dá lugar ao pai que sacrifica o próprio filho para salvar a humanidade.

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E assim voltamos ao ponto em que estávamos: deus ser responsável pela vida e morte na Terra. Só acreditamos nesta possibilidade porque crescemos em contato com o caráter paradoxal do ser superior. E temos consciência disso, tanto é que tentamos aliviar-lhe a culpa – por meio do argumento do livre arbítrio, ou da inescrutabilidade ou (incluo-o agora) do tríptico poder divino: sua onisciência, onipresença e onipotência. O tríptico poder, erigido por muitos religiosos como uma espécie de Grande Explicação da natureza divina, é tão contraditório quanto a figura a quem ele está relacionado. Horas há em que deus decide (o apocalipse já é um fato que só devemos esperar), outras em que eu escolho: posso livrar-me do apocalipse consoante a minha conduta ser “direita”. E se ela não o for, o livre-arbítrio é meu, ainda que deus já tenha ciência de meus atos (independente do livre-arbítrio), e toda força para proibi-los (se a minha decisão prejudicar a um terceiro). É inconsistente pensar, pelo menos para mim, que eu sou livre para matar, mas a vítima não é livre para não morrer. Minha vontade matou um homem, porém a vontade dele não o fez continuar vivendo. Mas os caminhos de deus são inescrutáveis...

A onisciência divina e o livre-arbítrio humano são dois conceitos que se contradizem. Se deus tudo sabe, porque está em toda a parte, é inconcebível que ele proceda de modo a fazer valer o livre-arbítrio de uns em detrimento de outros. Se todos são livres para fazer o que bem entender, quem decide qual “bem-entender” deve prevalecer? Além disso, será que este escolher é de fato tão livre quanto acreditamos ser? Os apóstolos escolheram, por livre vontade, seguir a Jesus. Outros tantos faziam e fizeram o mesmo. Por que deus escolheu a uns e não a outros, ou todos? Maria escolheu fazer-se em si segundo a vontade divina, o que muitas mulheres fariam, se não fossem preteridas pelo criador. Se eu escolho ser um assassino, é livre-arbítrio; se eu escolho fazer milagres, e não faço porque não consigo, é o quê?

Diriam os religiosos que deus se deixa operar quando se está aberto a ele. Suponho que para muitos estar aberto significa usar o livre-arbítrio para fazer o que deus quer, ainda que não saibamos exatamente seu desejo. Mas o livre-arbítrio deixa de sê-lo na hora mesma em que sou coagido a fazer a vontade de outrem, no caso, a de deus. Em outras palavras: não existe livre-arbítrio se o sistema pressupõe que, ou eu faço o que deus manda ou sou condenado. Não se trata de arcar com as consequências dos meus atos, como dirão automaticamente muitos, porque as consequências já estão preestipuladas antes mesmo de eu os cometer. Que liberdade é essa que já prescreve as implicações de minhas ações?

Atribuímos a deus valores que foram construídos pelas sociedades humanas, como se viessem dele. É a perpétua relação criador-criatura, a sempiterna confusão franksteinriana. E há nisso um grande problema, que muitos ignoram ou preferem ignorar. Volto ao que discuti anteriormente, referente ao alfa e ômega: supondo que deus seja responsável por dar vida às coisas, por criá-las e, num ímpeto de inspiração tenha feito uma criatura tão perfeita como é o ser humano, dizem que à sua imagem e semelhança, então ele também seria co-autor das obras humanas – talvez o barro de que aquele foi criado tenha captado um pouco da capacidade criadora divina. Neste caso, a co-autoria também é indesejável para o retrato que se quer de deus: criam-se as possibilidades de vida, mas muito mais as possibilidades de morte – estas, sim, as que mais marcam a nossa história. Então seria o caso de pensar: o caráter bélico do ser humano já estava no barro, ou também foi de alguma forma reflexo da imagem que serviu de molde para o homem? É fato que a deus associamos sempre as virtudes, e a nós mesmos, ou ao diabo, que é bode, e expiatório, os vícios. Mas, sendo deus o princípio, de onde vem o "mal", senão da própria origem do "bem"?

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Haverá quem diga que estou sendo superficial, e não estará mentindo. Contudo, o que estou analisando é justamente a superficialidade das coisas. Muitos questionam-me por ser ateu, e pouco se dão à teia de contradições que repetem tão exaustivamente sem pensar, como se tais argumentos fossem inquestionáveis. Ora, uma análise superficial, facilmente questionável como a minha, coloca em xeque muitos dos preceitos cristãos reproduzidos por fiéis que não sabem do que falam, programados apenas a repetir o que ouviram. Não obstante, os fiéis preferem-me perguntar qual a minha explicação para a origem do universo, afirmam que todo ateu acredita em alguma coisa – ignorando que a designação, injusta, significa justamente a não-crença –, que está na bíblia na bíblia na bíblia, e sequer enxergam o quanto a imagem que construíram do deus que defendem é obtusa. Não se questionam, em momento algum. Neste caso, a pergunta que gostaria de colocar, dentre outras tantas, é a seguinte: e se tivéssemos ouvido, desde os primórdios da civilização, que o Universo surgiu de uma Grande Explosão, e que Dela gerou todas as coisas que existem? E, posteriormente, alguém viesse para falar que isso é lorota, que o Universo foi criado por uma entidade superior, que governa a tudo e a todos? Acreditaríamos nessa pessoa? É difícil dizer que sim, uma vez que a nossa história é a dela e não a hipotética. E é exatamente isso que fazemos com todas as explicações, dadas por diferentes povos, para a origem do Universo.

O problema não está nas crenças, mas na edificação destas enquanto verdades absolutas. Há quem convive com a ideia de deus vinculada a uma seita ou crença existente. Há quem prefere dizer que deus é a força motora do Universo. Há quem não convive com a ideia de deus. O que não dá para aceitar é que estes últimos não sejam compreendidos como são os outros. Mesmo para aqueles que desacreditam das religiões, salvaguardando, porém, a religiosidade, insistirão na idéia de deus, e me dirão que a natureza, personificada mais acima, ou o Big Bang, implicitamente citado, são manifestações de deus, e que coisas tão perfeitas como tudo quanto há no universo não poderiam ser criadas de uma simples explosão, Ora, se deus é uma explosão, não há por que chamá-la deus; se é natureza, o melhor nome é esta palavra tão feminina e tão condizente com a idéia de provimento da vida. E se há uma vontade que guia as coisas do universo – e o ateu jamais poderá afirmar com convicção que não há, como nenhum religioso jamais poderá afirmar, com a mesma convicção, de que existe – seu nome pode ser apenas vontade, e não deus, que já tem uns tantos sentidos correntes por aí.

Acreditar em deus é necessário, confere sentido à vida daqueles que exasperam-se diante da esfinge inquiridora, a perguntar por que estamos vivos. Porém, para mim, o sentido da vida está em não responder à espinhosa questão, mas deixá-la em aberto, sujeita a quantas especulações forem possíveis e imagináveis. Àqueles que, como Édipo, respondem ao enigma, resta o consolo e conforto, malgrado sejam eternamente perseguidos pela sombra de uma ignorância acerca da própria identidade, porque contentaram-se com a primeira resposta. Para quem fica à porta, sob os olhos da esfinge, sobra o eterno desespero e a indefinição; graças a isso, o mundo sempre será cheio de possibilidades, e não apenas o deus e o diabo, bem e o mal, o certo e o errado, o esquerdo e o direito.

A mim, o que importa não são estes extremos, mas os matizes que se estendem de uma ponta a outra deles.