sexta-feira, 30 de março de 2018

Esboços para uma personagem melancólica

Os membros inferiores:

as patas seriam
de cãozinho maltês
são apenas duas, um par
de pernas tortas
coxas que não valem
o frango de domingo
do cão mesmo só as patas
e toda a maltesia
como um certo João
da família Mau Tempo.


O tronco:

o peito em carne morta
há quanto lhe arrancaram
os pêlos que aqueciam
o busto de bisão
o dorso em contraste
ainda cheio de plumas
penas cinzas de batuíra
manoelzinho-da-croa sem par


Os membros superiores:

tem patas e tem asas
e garras aparadas
nas pedras de algum rochedo mitológico aprendeu o desmolar, o vôo um eterno ensaio de aventura num livro infantojuvenil escrito quiçá por uma criança que não entendia dos recursos narrativos - e por isso ousava feliz em prosa&verso
do manoelzinho nem a cor
um vendaval vermelho
das asas que batiam
e mãos de garra amolada
que não botam medo em ninguém.


A cabeça:

não chega a ser uma juba
não é senão felino adocicado
tomando leite demais
carne de menos
os caninos pequeninos
maxilar mal acostumado
à crueza do alimento
ouvidos que não ouvem em surdina
carecem sempre de palavra
em alta voz, ALTA VOZ
o nariz um bico que não cheira
mas os olhos são de águia
de águas cheios, não só de lágrimas
não só de rios, Rios, risos
não só de mares, amares, amores
não só dos horizontes
o olho esquerdo um argonauta
cosmonauta o direito, soviético.


A moldura:

a jaula está aberta
ou gaiola, como queiram chamar
é prisão esquecida
o circo já se foi
deixou ali, no terreno baldio,
o curioso animal,
- de que espécie -
sem graça agora.
Partir? Ficar?
Os rastros de carroça
de carro e caminhão
questionam em silêncio
Seguir? No canto superior
há uma estrada sem sinais
uma rua que leva para


A parede

branca, recém pintada
só um quadro pendurado
um quadro, para que serve?
Arte, para que me serve
pergunto eu em voz alta
na galeria vazia do museu.

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