terça-feira, 14 de agosto de 2012

Três mesmas estórias e um fim


(estória para se ouvir ao som de Todos os Olhos, do Tom Zé)

             Ele foi pego. Três tiros perfuraram sua cabeça: no centro da testa, abaixo do olho direito e na boca. Um tiro na glote. Cinco tiros entraram pelo tronco: no esquelético peito, lado esquerdo e direito, na boca do estômago, dois na barriga magra. Quatro tiros nos membros inferiores: na coxa esquerda, joelho esquerdo, tornozelo direito e pé esquerdo, destroçando o tênis da última moda. A camiseta branca abaixo da blusa preta estava empapada de um sangue negro, viscoso, que corria pelos buracos abertos e formava uma poça escura ao redor da massa inerte. A calça de moletom amarelo perdera sua cor primeira e desaparecia no meio do lago escuro, absorvendo-o como se quisesse devolver ao antigo dono o líquido derramado. Não havia por perto nenhuma garrafa de leite estilhaçada. Se o peito ainda arfava, tentando atrair para si as últimas rajadas de ar, e se a boca ainda guardava um gosto macio e cheiroso, ninguém pôde constatar, pois a confusão ao redor crescia, saindo da calçada e ocupando duas faixas da avenida. Pessoas tentavam entender o que se passara. Outros pareciam estar contentes. O ônibus –  antes com todos os assentos, todo o corredor e vãos em que pudesse se instalar um corpo humano ocupados – jazia vazio, com as luzes inutilmente acesas. Todos estavam em volta da massa que desaparecia em sangue e sombras.
            Eles foram cumprimentados. Um, responsável por um tiro no olho, na boca, três no tronco (peito direito e esquerdo e boca do estômago), um no membro inferior; o outro, por três tiros nas pernas, dois na barriga e um na glote; o terceiro, por fim, dera o tiro na testa, o que fez o sangue espirrar e manchar a aba branca do boné que escondia o rosto alvo do corpo violado. Eles riam, aceitavam os aplausos. Carregavam mochilas nas costas. Através de uma delas, ligeiramente aberta – pertencente ao responsável pelo tiro na testa –, se via pedaço de um tecido uniformemente cinza. Alguém falava sobre a coragem dos distintos moços. Ouviu-se um agradecer a deus por estarem naquele momento no ônibus, voltando para casa depois de um dia de serviço árduo, o uniforme provavelmente na mochila que carregavam, o instrumento de trabalho, porém, ainda na cintura. Sorte, disseram, pois deu tempo de descer do ônibus e acertar a perna, fazendo o corpo tombar na calçada, próximo do asfalto. Depois foi só correr à caça ferida e terminar o serviço. Pena que aquele outro já se via longe, sem chance de ser pego. Estavam em volta do corpo, exibiam suas armas salvadoras, não viram nenhuma garrafa de leite estilhaçada, apenas a mancha negra que crescia e sujava a calçada recém reformada.
            Ela já estava aliviada. Quando ouvira o barulho do ônibus se aproximando, não exitara ao atirar-se em sua frente, pois julgava ser melhor morrer daquele jeito do que pelas mãos ásperas e asquerosas daqueles dois sujeitos pretos, eram pretos?, sempre são pretos. Sorte ou azar, o ônibus parou em cima de seu corpo, sem lhe causar nenhum mal. O susto, provavelmente ocasionado pela presença quase física da morte, a fez parar, o que permitiu que os elementos a alcançassem. Arrastaram-na, disse, para a viela sem iluminação ali perto, levantaram sua saia branca, rodada. Um a prendia pelo pescoço, quase lhe privando a entrada de ar. O outro rasgou a calcinha e, ferido com um chute da perna que se debatia, revidou com um tapa violento na face direita umedecida de lágrimas desesperadas e um soco na boca do estômago frágil. Não fosse o indivíduo a segurá-la, seu corpo tombaria indefeso no chão. Sentiu quando sua blusa foi escancarada e seus seios apertados com violência e lambidos por uma boca selvagem e fétida e nojenta. Mas o ônibus havia parado e algumas pessoas desciam. E ela se viu salva quando eles a soltaram e correram para fora do beco escuro. Um atirou-se no meio dos veículos que passavam com velocidade reduzida, pois o coletivo parado em local inesperado obrigava-os a andar com cautela. O outro, com medo de ser pego por um dos carros que passavam, correu pela margem da avenida. Ela foi amparada por outras mulheres compadecidas; viu que uma multidão corria pela calçada, mais para frente. Ouviu um som áspero, monocorde, rápido. A este se sucederam doze outros baques iguais. Pediu para ser levada ao local dos tiros. Encontrou apenas um corpo no meio-fio, o sangue escorrendo para o asfalto, sem nenhuma garrafa de leite estilhaçada. Também cumprimentou aqueles que fizeram o que ela não poderia ter feito. Transeuntes se juntaram a multidão do coletivo e já ocupavam dois terços da avenida. Os carros passavam lentamente e demoravam ainda mais para entender o que havia ocorrido.
            Ali perto, um motorista discutia os males do trânsito com o seu patrão, sentado no banco de trás, enquanto observavam descontraidamente a movimentação da qual se aproximavam.

(conto perdido, provavelmente de 2008)