quarta-feira, 27 de abril de 2011

EM HOMENAGEM À CRIS

O futuro é um vento a soprar incessantemente contra o nosso corpo, trazendo não sei de onde presentes com os quais vivemos e nos habituamos. Caminhamos contra este vento erguendo minimamente os pés, para não sermos também levados. Dos muitos presentes que são arrastados pelo vento, tentamos reter aquilo que nos apraz, segurando-os com a força de mil titãs que não somos. Alguns presentes se soltam e, quando olhamos para trás, vemo-os perderem-se no Nada, um não-lugar só existente na memória. Na nossa memória.

Já agarrei livros. Também agarrei ideias, mas estas, tão inconstantes e arredias, escapavam-me assim que eu supunha tê-las domado. Outro dia tentei agarrar uma tarde de outono. Infelizmente as horas, serventes do vento, levaram minha tarde embora.

Às vezes desequilibro-me; o vento, eterno, me leva até eu ser agarrado por alguém. Às vezes sou eu a agarrar: amores e amizades que alimentam nossa vida. Uns e outros são os que mais dóem quando o vento nos arranca. E são, paradoxalmente, os que mais valem a pena serem agarrados. Muitas vezes o desejo de permanecerem juntos é mútuo. Então multiplica-se a força e, mãos dadas, caminhamos contra o vento, conquistando e repartindo novos presentes.

Agarro meu amor e meus amigos. Em corrente, lutamos contra o soprar. Não nos iludamos: haverá levados pelo vento, outros que serão trazidos. Estes não sabemos quem são até que cheguem. Aqueles vão para os confins da memória, viver na retina de nossos pensamentos. E não podemos fazer nada contra o que já foi e o que há-de vir.

Sem a certeza do que vem e do que vai, me agarro a eles: ao meu amor e aos meus amigos, à minha amiga Cris, a quem dedico estas palavras. O importante é que neste momento estamos juntos, lutando contra o vento para permanecermos assim. O resultado, quando o vento trouxer, não será mais importante do que os passos dados, "alegria de caminharmos juntos, lado a lado, por amor".

Parabéns, minh'amiga Cris!!! A você único presente que não pode ser trocado ou transferido: estas palavras.


terça-feira, 26 de abril de 2011

HERÓIS, SEGREDOS E HIATOS

Alguns a chamavam Índia – e ela realmente parecia: cabelos negros e lisos, pele vermelha, como que dourada ao sol. Era bonita. Não sei se a mais bonita da escola mas, para mim, era o maior encanto da sala.

Sobre o corpo? Acho que não olhávamos muito para corpos naquele tempo. O que mais encantava era o rosto tenro, o olhar suave, a voz macia. Pelo menos eram estes os atributos que justificavam os desejos que acometiam ao J.H. e eu.

Passamos o ano inteiro a nutrir tais desejos, sem a coragem necessária para expô-los a quem era o objeto deles. O insaciável tempo engolia os nossos dias de infância, sem que déssemos conta. A pouco e pouco o ano findava, as aulas acabariam e todos nós só nos encontraríamos na futura quarta série. E o desejo, a paixão? Levá-la para o ano seguinte? Não. O que era da terceira deveria ser resolvido na terceira.

O J.H. e eu combinamos a data: a nossa festa de confraternização. Faríamos isso juntos, pois éramos amigos. Decerto que brigávamos, deixávamos de nos falar, mas por pouco tempo. Era só ele chegar com um novo exemplar da revistinha que líamos e, então, as rixas estavam resolvidas.

Estranha esta relação. A revistinha vinha a calhar, sempre. Eu não podia comprá-las, de modo que a única oportunidade de conhecer melhor os meus heróis prediletos dos desenhos da TV era dar o braço a torcer e fazer as pazes com o J.H. Não era um gesto heróico. Ou, pensando bem, devia ser o mais honrado dos gestos, cheio da humildade que compete a um herói. É verdade que a revistinha, em si, não era o pomo da concórdia, mas sim uma frase que ele me dissera, provavelmente aprendida com sua irmã, dada à filosofia barata: “a amizade pode ser uma vírgula, mas nunca um ponto final”. Era isso que trazia comigo, e ainda trago hoje, quando o insaciável tempo devora os dias da maturidade.

Cheguei cedo à nossa festa de confraternização. O J.H. não havia chegado, e não chegaria. Mas ela estava lá, com o mesmo rosto, olhar e voz. O terreno já havia sido arado antes: plantamos enigmas que seriam colhidos neste dia. Ela queria saber de quem gostávamos. Imagino que a vaidade feminina já devia ter concedido a resposta a ela; no entanto, enquanto não revelássemos o nome, com todas as suas seis letras, ela não sossegaria.

Metade de minha coragem havia faltado. Não sei se conseguiria falar para ela a impossível verdade. Mas foi prometido, muito embora ela, subitamente, tivesse deixado de se importar com o segredo tão bem guardado; não perguntava, nem queria saber do assunto. Pode ser que essa atitude é que tenha trazido à tona uma coragem muito maior do que eu supunha ter. Quando se tem certeza da derrota é que pomos a derradeira esperança na última cartada. Às vezes dá certo. No ano seguinte eu não voltaria a falar com ela por vergonha. Também não voltaria a falar com o J.H. A nossa amizade, já tão intermitente, já tão cheia de vírgulas, ganharia reticências e, dali, um grande hiato se formaria até os atuais dias.

Encerrou-se a festa e todos foram embora; ela subia as escadas que levavam para a rua. Corri, desesperado, chamei-a – Elaine! – ela parou. – Sabe de quem eu gosto?

- De quem? – era um riso que eu via ali?

Respondi. Ela fez um gesto de descaso, como se o que eu acabara de dizer fosse brincadeira. Virou-se, atravessou a rua e foi para suas férias. Naquele instante eu estava feliz, pois minha coragem me igualava aos meus heróis. Voei para casa a fim de pegar o episódio do dia.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

ROUPAS NUAS


As roupas são tristes:

Vestem os homens,

completam-lhe o sentido, a vida,

mas são tristes. Tristes.

Cobrem o recém-nascido,

rotulam e enquadram.

Enchem mulheres,

criam formas, formam máscaras.

Unem-se aos corpos

entregam-se a pele na tentativa de existir.

Mas são vazias. Tristes.

É nesta solidão que se encontram, as roupas.

Sozinhas, são roupas, apenas,

e a tristeza lhes pertence.