sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Cinzas - inventações de carnaval

Os que me conhecem sabem da minha mania em levar para qualquer viagem que faço meu "diário de bordo", isto é, um registro de acontecimentos, das minhas impressões sobre os lugares que visitei. É a forma que encontrei para imortalizar os momentos vividos, sejam eles agradáveis ou não (se pretendo ser uma pessoa em constante aprendizado, não posso me furtar aos conhecimentos proporcionados por aquilo que não desejo ou acho ruim).

O recente carnaval mereceria algumas palavras por sua singularidade em minha vida. E eu não as deixei de registrar. Todavia, e isto é um fato inusitado, encontrei perdido no calçadão de São Conrado uma folha de papel abandonada, ao que parece, furtada do caderno de alguém, já um tanto pisoteada, com resquícios de água do mar e areia. Analisando seu conteúdo, é óbvio perceber que se trata de uma página de diário, ou de uma daquelas notas que se faz para registrar sentimentos - eu as fazia muito no passado. Hoje, nem tanto.

Ora, tamanha coincidência não poderia ser deixada passar em branco; afinal, sou o único a escrever sobre os dias de viagem, os refúgios de que tanto necessito? A folha perdida, encontrada ao acaso por mim, deu-me uma ideia bastante curiosa: e se eu editasse o relato, ou melhor, se eu misturasse o seu conteúdo com o meu próprio, de modo a fazer deles duas peças que se encaixam? Pensando em questões de estilo de autor, não há  muitos problemas, afinal, os relatos não são tão diferentes uns dos outros. O que de fato seria uma questão a se pensar seria a da identidade do autor: analisando alguns aspectos da folha achada, é possível supor de que se trata de uma mulher escrevendo. No entanto, como serei eu o autor da façanha de unir os textos, caberia a mim torná-los uma peça única. Ou não: penso agora que o melhor a fazer é compor os relatos de modo a evidenciar as singularidades de cada um - as quais, imagino eu, irão mostrar o quanto são semelhantes. Há a inda uma outra questão: ao transformá-los em uma coisa só, não estarei deixando de lado seu conteúdo (auto)biográfico, isto é, negando sua validade como algo real? Sim, é evidente, porém tal pergunta já deveria ser colocada antes de escrevermos: qualquer relato já não é uma invenção? Deixo os rodeios e vou-me ao trabalho:

***



O Rio de Janeiro é lindo, como nunca tinha visto, e o carnaval é o avesso do que sempre imaginei. Os dias passados aqui foram coloridos, mágicos, especiais. Mas nem assim consegui esquecer aqueles meus sentimentos que sempre me acompanham. O Rio sempre foi meu local de fuga, desd'eu menino. Vir para cá me traz a ideia de descanso, de convívio em família, e até o calor tão singular que impede o sono e nos amolece o dia me parece agradável. Mas estar aqui significa principalmente um rompimento com o cotidiano, máquina diária monotonando a existência. Canso-me muito do que sou, do que me transformo enquanto Cronos devora a minha vida. Canso-me dos sentimentos sem sentido que me acometem, dos vazios infinitos que me enredam, da angústia tão antiga e íntima que só pode ser eu mesmo. Viajar me permite conhecer minha própria angústia, conversar com ela, entendê-la. Mas estar com ela é estar só. Preciso, por isso,  administrar a parcela de mim que precisa estar em contato com os companheiros e aquela que ficará em companhia da angústia. Viajar me corta em dois. Acho que estar nesta constância de ser duplo é que gera minha imobilidade, maior mal. Estar nesse encontro de forças me inutiliza. Penso na facilidade e comodidade  de deixar-se tombar para um lado. Fazer isso, porém, é me negar a identidade.

Esta cidade é, como a minha São Paulo, uma cidade de contrastes. As praias são maravilhosas, as paisagens deslumbrantes, e em muitos locais você sente a harmonia entre natureza e a obra humana. Mas o que está distante da região mais abastada (pelo menos até onde conheci) é feio, sujo, fedorento. A cidade é muitas dentro dela mesma. Parece um pouco comigo. Sou pelo menos duas dentro de mim. Estou aqui tão feliz, contente mesmo, mas há uma parcelinha, não muito pequena, que sempre chora e se sente deslocada.

Se eu pudesse ir embora e deixar toda a angústia seria quase um abandono de mim mesma. Ou seria como libertar-se de um casulo para se transformar em outro ser, o verdadeiro ser? Não penso em verdades absolutas: o Acacio que sou é um caleidoscópio das coisas que viveu: não há um verdadeiro Acacio por baixo das máscaras sociais que somos obrigados a vestir. Elas sou eu. 

O Carnaval, o Rio, os dias quentes ficam para trás do tempo e do espaço. Às vezes a memória me trará os flashes da Lapa e de seus arcos brancos, suas escadarias multicores, de São Conrado, areia calma, forte mar. De sorrisos e do sorriso ingênuo e carinhoso, em barba por fazer. De olhos tristes e do medo de ser eu eu o motivo deles. Às vezes desejarei reviver cada segundo dos dias antes passados; outras quererei esquecê-los, apagá-los. Mas é certo que esses dias já fazem parte do meu relicário de pequenas dores e felicidades.

Os momentos evanescem com o andar do ônibus em direção ao Porto Seguro. Os sentimentos, estes continuam a latejar dentro disso a que chamam alma. Se pudéssemos reter na retina os momentos que nos acham, como fazemos com algumas imagens, talvez poderíamos explicar melhor a nós mesmos o que sentimos.

Já as palavras voltam aos seus lugares. Finda a viagem, o refúgio. Mas trago angústias e anseios novos, sufocados já em seu nascer. A ideia de Cronos sempre me persegue: o tempo a devorar seus próprios filhos, que somos nós mesmos. E eu também não faço como meu Pai? Todas essas dores, angústias e anseios, não sou eu a devorá-los, guardá-los na barriga? E se um dia um deles me despojar e virar rei? Não sei. Até lá estarei como sempre estive: revestido de minha couraça de estoicismo, permitindo-me certos rompantes de alegria, raiva, tristeza. Porém o grosso de todos esses sentimentos continuará represado até a queda deste titã.


quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

TV DE PLASMA (NOVO MEMBRO DA FAMÍLIA)


     Sofá disposto em L. Três paredes brancas e uma azul-índigo. TV de plasma, quarenta e duas polegadas, na parede em destaque. Mesa de centro, refrigerante, pipoca, guardanapos. E a campainha.
            - E aê, primão!
            - Fala, mano!
            - Trouxe o jogo? Hoje o negócio vai ser do outro mundo!
            - ... Olha o tamanho desta TV? Meu, vai ser irado!...
            - ...Ela tem definição full HD, entrada USB, dá pra conectar no computador e jogar on-line!
            - ...Meu, que imagem perfeita!
            - A resolução é de 1024 x 768 pixels. A imagem parece real. Você precisa ver o Call of Duty como fica!
            - Oi, meu querido? Quer comer alguma coisa?
            - Não agora, tia.
            - Mãe, traz um refrigerante pra nós! Este já tá quente e acabando.
            - Claro, meu filho. Ah, depois eu quero ver a novela...
            - ... E o Resident Evil, então?! O som dos zumbis gela até a alma!
            - O cara lá do trampo tem home theater. O negócio é animal.
            - É que você não viu a ligação que eu fiz. As entradas auxiliares estão ligadas no rádio. Ouve! MEU! DÁ PRA SENTIR A PAREDE BALANÇAR!
            - AH, EU TROUXE TAMbém o jogo do Senhor dos Anéis. O gráfico dele deve ficar chapado na TV.
            - E você precisa ver os filmes! Olha isso aqui! Olha, olha, olha: os canais da net têm transmissão HD e a imagem fica perfeita!
            - A tecnologia é animal...
            - Claro que não tem 3D, mas esta não fica por baixo, não! A gente aproveitou que ia sair de linha e comprou por um preço bacana.
            - Que sorte, hein! Meu pai comprou uma de LED, mas ela é bem menor que essa.
            - Tem cachorro-quente e hambúrguer. O que você prefere, querido?
            - Eu quero os dois, tia!
            - Eu também, mãe. Ah, tem salgadinho ainda? Pega pra nós?
            - Vamos comer primeiro? Tá me dando uma fome...
            - O cachorro-quente já tá pronto. Vocês podem ir comendo enquanto eu frito o hambúguer.
            - Eu joguei ontem o Harry Potter. O jogo é besta, mas o gráfico é muito bom.
            - Ah, depois eu quero jogar o Winning Eleven contra você.
            - Pra perder de novo?
            - Que perder o quê? Você é que perdeu pra mim da última vez que eu vim aqui!
            - Que eu perdi! Você não lembra, não? Eu ganhei de você de três a um.
            - Faz logo o cachorro-quente pra salsicha não esfriar. Tem batatinha no armário.
            - Cadê a maionese?
            - Pega na geladeira, querido!
            - Mas hoje eu vou vencer você! Você vai ver!
            - Sonha, garoto!
     O som do hambúrguer na chapa. Catchup sobre a toalha branca. Maionese, bata-palha e uma panela com salsicha em molho de tomate. Copos cheios de coca-cola. E o barulho do portão.
            - O pai chegou!
            - Deixa eu preparar o lanche dele. Meninos, o hambúrguer tá pronto.
            - Você tem o Assassin’s Creed?
            - Claro! Eu comprei também o God of War. Chapado!
            - Deve ser louco na sua TV.
            - Acaba logo que eu já te mostro.
            - Oi! E aí, Rogério!
            - Beleza, tio?
            - Amor, seu lanche já tá quase pronto.
            - Ainda bem! Tô morrendo de fome!
            - Mãe, vou comer o hambúguer depois. Qual você vai querer jogar, primão?
            - Escolhe aí.
            - Deixa eu te mostrar o God of War... Agora só falta eu trocar o vídeo-game.
            - Cadê o segundo controle?
            - Em cima da rack. Olha só esta imagem! Olha a definição!
            - Cara, é-mui-to-lin-do! Chapado!
            - Péra aí! Você não queria ver o Assassin’s Creed? Calma aí... o vídeo-game já tá meio zoado... só mais um pouquinho...
            - Putz! Esqueci de trazer o Final Fantasy dez! Que merda!
            - Olha o Assassin’s Creed! Esse jogo é dos infernos!
            - Coloca o Winning Eleven aí!
            - Já quer perder?!
            - Você vai ver quem vai perder!
            - Meninos, tá na hora da minha novela!
            - Ah, mãe, dá um tempo aí!
            - Que tempo, que nada! Você passou o dia todo jogando vídeo-game!
            - Que passei o dia todo, mãe! O Rogério só chegou agora!
            - Tá, mas eu avisei que queria ver a novela...
            - E é sempre na hora que eu vou jogar!
            - Não. É você que quer jogar na hora da minha novela.
            - Porra! Eu nunca posso jogar vídeo-game!
            - Olha a boca! Você passou o dia inteiro em casa.
            - Só que eu quero jogar agora. Pode ser? Ou eu só posso jogar na hora que vocês não querem usar a TV?
            - Vocês vão passar a madrugada toda jogando. Dá pra esperar um pouquinho?
            - Ah, claro! Eu chamei o Rogério aqui pra ficar vendo novela!
            - Primão, sem problema...
            - Sem problema o quê, Rogério?! É sempre assim! Eu tenho que seguir a vontade deles, jogar vídeo-game na hora que ninguém quer usar a TV. Eu não tenho vontade, eu não posso escolher... agora não! Eu vou jogar na hora que eu quiser.
            - Ah, não vai não! Tá no horário da minha novela e sou eu quem vou assistir!
            - Isso! Pode mandar nessa porra! Eu nunca posso fazer nada, mesmo!
            - Olha a boca, moleque! Respeita a sua mãe!
            - Que respeito, porra nenhuma! Eu fui respeitado por acaso?
       - Abaixa a bola que quem manda nessa porra sou eu! Você fica o dia todo vagabundando, sem fazer nada, seu imprestável!
            - Ah, agora eu sou o imprestável! Quando era pra pesquisar a TV eu servia, não é?! Tudo bem: essa porra é de vocês, mesmo!
            - JÁ FALEI PRA VOCÊ MANEIRAR NO TOM, PORRA!
            - Ah, quer saber: não quero ver mais novela nenhuma!
            - Você vai ver sim! Já não arrumou confusão? Então faz o que você quiser com essa merda! Toma a porra do controle...
            - Me respeita, moleque! Você tá falando com sua mãe!
            - Que respeito o quê! Eu nunca sou respeitado nessa porra!
            - Calma, primão...
            - Calma o cacete! Todo dia é assim: eu tenho que seguir o horário deles! Só posso jogar depois do jornal, depois da novela, depois do jogo. Ah, vai tomar no cu!
            - QUER LEVAR UM MURRO, SEU MERDA? Cala essa boca, você não tá falando com aquela vagabundinha sua, não!
            - Vagabunda é aquela Edith e o seu filho bastardo!
            - Você acha que me atinge chamando a Edith de vagabunda, seu moleque?! Chama ela do que você quiser, seu porra!... Fica o dia inteiro na frente do computador, da TV. Vai fuder a Mariana e vê se some da minha frente. Até parece veado: o dia inteiro em casa! Vai trepar que você ganha mais!
            - Eu trepo a hora que eu quiser, entendeu!
            - Esquece essa TV. Eu vou pro meu quarto!
            - Ah, não! Sua novela já tá passando! Você não queria mostrar que manda nessa porra? Então: pode mandar! Eu não vou jogar mais porra nenhuma!
            - É sua mãe que manda nessa porra, sim! E se você não tá satisfeito, tá na hora de ir embora!
            - Eu vou mesmo! Já não agüento mais essa merda!
            - Então acorda, moleque! Você já não tem idade de viver na minha asa, não!
            - Vai à merda, com esse papo, pai! Toda vez é isso?! Me expulsa de casa então! Vai! Essa porra é um inferno, mesmo!
            - Some da minha frente, então! Quero ver se você é homem! Vai se virar sozinho! Vai trabalhar pra se sustentar! Na sua idade eu não dependia de ninguém.
            - Me sustentar você não quer, mas ficar pagando pensão pro filho daquela vagabunda, não tem problema, não é?!
            - Já disse que você não me atinge falando da Edith e do João. E vagabundo é você que não descola essa bunda do sofá e não faz nada que presta!
            - Vai cuidar da sua vida e me deixa em paz!
     Choro. TV ligada. Telecine Cult. Filme: Festa de Família, de Thomas Vinterberg. Garrafa de refrigerante virada; líquido escuro sobre o tapete branco. E a Wikipédia define o plasma como o quarto estado da matéria, diferindo-se dos estados sólidos, líquidos e gasosos. Trata-se de um gás constituído de átomos ionizados em uma distribuição quase neutra de íons positivos e negativos. O site ainda informa que a pequena diferença de carga torna o plasma eletricamente condutível, tornando-o bastante sensível a campos eletromagnéticos.