sábado, 5 de agosto de 2017

Resto

Ficou
daquela manhã sem cor
a última dança do teu
corpo sobre o meu
a saliva escorreu fresca
como o gozo nosso
derradeiro gozo quente
no pelo, na pele já azeda
a saliva escorreu fresca
era uma tarde amarela
quando a paixão chegou
teu corpo dançava em mim
- dizem que fugi
 por te querer demais -
o sumo de tuas nádegas
me engolia
a seiva um jato rápido
as veias abertas
(latinos somos, cariño)
uma mancha roxa na noite
uma luz vermelha na cabine
apertada, o suor brilhava
em tuas costas, em meu peito
uma roupa íntima de atleta
força dança esforço um vaievem
cansa a lembrança grudada
a saliva escorreu fresca
naquela manhã sem cor
o gosto da pele já azeda
prenúncio da eiva sobre a cama
o dia sem cor cheirava a
despedida e eu um olho
apenas e um ouvido.

domingo, 23 de julho de 2017

O medo

Em verdade temos medo.
Nascemos escuro.
As existências são poucas:
Carteiro, ditador, soldado.
Nosso destino, incompleto.

Carlos Drummond de Andrade





O medo encolheu a cidade. Estreitou as ruas. Alojou-se em todos os rostos estranhos, forrando-os de uma familiaridade inquietante. Passou a habitar as esquinas, os bares, as salas vazias de cinema, os eventos esporádicos. Impregnou a pele. Está no vento, nas palavras e no silêncio. Vai a parques, shows, manifestações. Ri de nossos anseios. Engorda com o vacilo dos passos errantes. O medo entrou nas casas e pintou as paredes. Assentou-se sobre os móveis como poeira. Ouvimos o seu passear pelos canos da hidráulica e elétrica. Nas roupas do varal, vemos o medo espreguiçando seus tentáculos. Não precisa mais do escuro: revela-se à luz no jantar, ao sol do amanhecer que entra pela janela embaçada. Escorre na água do chuveiro. As roupas no armário são escolhidas pelo medo. As meias e cuecas, o gorro e a boina, o medo esteriliza. Irmanados, sentimos o medo sentado à mesa. Come do nosso prato, deixa-nos o resto. E fraquejamos. Emagrecemos. Cansados, pousamos a cabeça sobre o travesseiro e o medo está lá, deitado ao lado, um corpo ausente que vela o nosso sono. Encobre os sonhos que não lembraremos quando acordar. Já não nos seca, o medo. Ao contrário, nos enxarca de suor, da água que flui de um duto estourado na avenida. Já não nos paralisa: caminha conosco, um amigo velho. Na memória, o medo deslizou sub-reptício e pôs seus ovos. Eclodiu em todas as lembranças plantadas. Nadou nos rios de histórias passadas e alcançou os desejos que voavam distraídos. O medo transmutou-se em som de pássaro, em mormaço, em cachaça, em fumaça de palo santo. O medo, um convite para dança. Eu não danço. Mas arrisco.

domingo, 2 de julho de 2017

Aguar o tempo

O silêncio não é céu azul em manhã seca de inverno.
O silêncio é nuvem branca.
O silêncio úmido vaga alheio aos que debaixo olham.

E olhamos.

Com os mesmos olhos imaturos da criança, olhamos.
A gente vê o algodão branco e desenha neles.
Como em folhas - nuvenspelho.

Queira o bom deus que o Climatempo esteja certo e caia a chuva no fim da tarde.

sábado, 13 de maio de 2017

Teu silêncio

"Estou absolutamente cansado de literatura; só a mudez me faz companhia. Se ainda escrevo é porque nada mais tenho a fazer no mundo enquanto espero a morte. A procura da palavra no escuro."
In: A hora da estrela -  Clarice Lispector



O eco que me rouba a madrugada. A voz nas cavernas da memória. O abraço que me prende à cama. O vazio da cama. O murmúrio do chuveiro. O azulejo frio. A roupa que me veste. O sapato amarelo que me guia. Bate como fome. Como a falta de fome. Como o amargo do café.

Acompanha-me como sombra. A canção que se repete. Um refrão clichê. Um vagão cheio de ninguém. O peso a menos na balança. Um peso a menos na carteira. Duas notas de cinquenta. O excesso de horas vadias. Anda como quem esqueceu pra onde vai. Corre nas aulas e nas salas de cinema.

O meu grito. A palavra que me corta. Que me sobe à garganta. A prosa mal escrita. O verso que não sai. Um poema de João Cabral. O Gigante Adamastor. A solidão de terno azul. O estalo do gatilho. Perfura as noites e os dias e os meses. Incansável. Arrasta-se como lesma. O rastro de gosma da lesma. A busca. A espera. O vácuo.

Uma resposta.

segunda-feira, 20 de março de 2017

Mergulho

Vertigem é o desejo da queda. É expectativa de beijar e unir-se ao asfalto. Mas não há arranha-céu: é o chão que some sob a distração dos meus passos na rua deserta em fim de domingo. Quem sabe o fluido que brota dos rios escondidos da cidade. Quem sabe os dutos que se rompem diante da pressão atroz da água. Meu corpo imerge e a pele se retesa. A pele, sim: estica-se e crispa-se sob o frio pegajoso do Líquido. Mamilos e pelos rígidos, duros falos a menos de um segundo do gozo e, não menos de um segundo seguinte, amolecidos dormem estirados na carne. O cansaço. Penetra o Líquido na caça por poros abertos, buracos negros que engoliram a verdade do universo quando ele mal tinha nascido, o óvulo primordial na esperança da forma anterior à Forma. Ergo o olho. O universo é o céu sobre a abóbada e também é o buraco aberto no chão, uma boca na rua, um buraco arrombado no peito, uma boca na alma. Os poros arreganham-se, o Líquido se assanha até aos músculos. Agora sim: a rigidez contraída dos ombros, o trincar dos dentes, o bater de mãos pés coxas na ânsia da ideia natimorta, o resgate, a ânsia de vômito quando o Líquido lubrifica o pescoço sem chegar à boca, o nariz não comporta o cheiro abissal, toda a sorte de dejetos ali, o humano na sua forma mínima, o humano naquilo que ele próprio enjeitou, preteriu, o humano na sua verdade lodosa jorrada do corpo pelo cu, buraco do fim do mundo, dobre o tempo-e-espaço e é o fim-começo-fim de novo. O novo no fim, nos excrementos que boiam, a essência das coisas partidas, o café, o macarrão, a canela, o vinho, a memória liquefeita do amor, das ruas, da boca de lobo voraz engolindo as águas passadas, os direitos ejaculados no ralo e os buracos negros do corpo felando o passado, a sucção enfiando a bosta em cada poro, o engasgo quando o Líquido chega à boca, pedaços de história não esquecidos. O topo de mim, a cabeça seca na iminência de afundar, resistência sucumbindo ante a ânsia que ameaça expelir esboços de futuro. Não há chão. O fosso aberto, buraco sem fundo, fundo, fundo. O Líquido gruda na pele como porra aos pelos no contato com água quente. Nada. Sobre a superfície, nem vulto, voz, aceno de adeus. Silêncio. No buraco, grito. Mete-se então o Líquido grosso, espesso, boca adentro, goela abaixo, caminhos escuros dos meus avessos, do que restava intocado, sinto agora a intenção devassa do Líquido: encontrar saídas, fecundar o óvulo primígeno e fazer brotar outros três, treze, trezentos mil universos, cuspi-los poro a poro, e seguir, entranha-se em busca do buraco do fim do mundo, os caroços não olvidados como espermatozoides viajando no leite proteico, cuecas, bares, o longo caminho da madrugada, a reminiscência dos amor3s: o cu regurgita tudo uma vez mais.

terça-feira, 14 de março de 2017

click & flash

Meu futuro é um rolo de filme de 24 poses da Kodak, ainda virgem, esperando uma máquina analógica.
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a máquina escangalhou.