sábado, 27 de dezembro de 2014

mau gosto est(ético)

o que carrego hoje no peito é granada
sem pino

devia atirá-la bem longe!
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atirá-la bem longe!
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bem longe!
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longe!
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...

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Poética

Poesia é mar onde os poemas nadam.
A gente pesca,
mas bom mesmo é mergulhar.

domingo, 14 de dezembro de 2014

Pra hoje, desde antes, até não sei quando

"De que serve ter o mapa, se o fim está traçado?
De que serve a terra à vista, se o barco está parado?
De que serve ter a chave, se a porta está aberta?
Pra que servem as palavras, se a casa está deserta?"

Aquele era o tempo
Em que as mãos se fechavam
E nas noites brilhantes as palavras voavam
E eu via que o céu me nascia dos dedos
E a ursa maior eram ferros acesos
Marinheiros perdidos em portos distantes
Em bares escondidos
Em sonhos gigantes
E a cidade vazia
Da cor do asfalto
E alguém me pedia que cantasse mais alto
Quem me leva os meus fantasmas?
Quem me salva desta espada?
Quem me diz onde é a estrada?
Quem me leva os meus fantasmas?
Quem me leva os meus fantasmas?
Quem me salva desta espada?
E me diz onde e´ a estrada
Aquele era o tempo
Em que as sombras se abriam
Em que homens negavam
O que outros erguiam
E eu bebia da vida em goles pequenos
Tropeçava no riso, abraçava venenos
De costas voltadas não se vê o futuro
Nem o rumo da bala
Nem a falha no muro
E alguém me gritava
Com voz de profeta
Que o caminho se faz
Entre o alvo e a seta
Quem leva os meus fantasmas?
Quem me salva desta espada?
Quem me diz onde é a estrada?
Quem leva os meus fantasmas?
Quem leva os meus fantasmas?
Quem me salva desta espada?
E me diz onde e a estrada
Quem me leva os meus fantasmas?
Quem me salva desta espada?
Quem me diz onde é a estrada?
Quem me leva os meus fantasmas?
Quem me leva os meus fantasmas?
Quem me salva desta espada?
E me diz onde e a estrada

domingo, 7 de dezembro de 2014

sem título (da série "salão de festas da palavra")

Os pássaros não entendem as árvores.

Chegam na primavera, alimentam-se de seus frutos, descansam em seus galhos. Vêem toda a extravagância e encantam-se. E cantam felizes de uma felicidade que só os dias de setembro conhecem. É tudo festa, de uma ponta a outra do dia, dos dias.

Os pássaros não entendem as árvores.

Não conseguem ver as raízes profundas na terra, dando sustento a toda a exuberância exterior. Não sentem o lento fluir da seiva percorrendo veias do tronco aos galhos, e destes às folhas. Nem sabem do misterioso milagre que se faz toda manhã quando a luz vira alimento - não só para elas, é preciso dizer.

Os pássaros não entendem as árvores.

Assustam-se com o cair das folhas. Sentem, neles próprios, a dor que é despir-se e revelar-se. Olham com desespero o chão coberto daquilo que para eles era a própria felicidade. Não compreendem porque é necessário a renovação, se a alegria é tão boa e só faz bem. A tristeza lhes pesa nas asas e no canto. Sentem no vento um chamado oculto e alçam vôo. E querem levar as árvores consigo.

Os pássaros não entendem as árvores.

Partem antes mesmo do adeus. Em busca de latitudes mais amenas. Se sul, se norte, se centro, pouco importa. Precisam desfazer-se do peso que lhes grudou no canto e na plumagem vermelha. Se soubessem da seiva-essência que continua fluindo terna e eterna. Se observassem as raízes na busca incessante e cada vez mais funda e escura do sustento. Se soubessem que as folhas caídas, afinal, alimentam as raízes.

As árvores entendem os pássaros.

Sua necessidade de voar. Seu desejo de partir. Seu medo do outono e do inverno. As árvores invejam os pássaros. Estes que quebram a monotonia azul com alegria rubra. Também gostariam elas de enroscarem-se por vezes no vento, afrouxar as raízes e deixarem-se ir. Pudessem, elas também teriam asas. Mas sabem que precisam ficar, daqui a pouco será necessário novas folhas, novos frutos. Os pássaros voltarão em busca da alegria, mesmo que não saibam que o que vêem é toda a jornada da seiva, toda a busca da raiz. Que a felicidade está tão na luz que a folha absorve como nos nutrientes que a escuridão da terra esconde.

Os pássaros não entendem porque as árvores choram.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

dos dias em branco que precisam ser pintados

aquele beijo passou a fazer parte de mim, do meu corpo, como tatuagem. não: como cicatriz. cicatrizes, aprendi com os Cavaleiros, são troféus de batalha.

foi a melhor luta que travei.

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

sem título (da série "salão de festas da palavra")

é meia noite e a vela ainda expele um aroma carmesim. há muito as taças estão secas. pratos vazios enfeitam a pia. no quarto, não fossem três a arfarem ligeiros, o silêncio seria um deus absoluto. só a playlist parece infatigável.

os restos ficam pra amanhã.

Poética

veja bem:
a poesia pode não ser nada além da coceira que fica ao final do poema.

sem título (da série "salão de festas da palavra")

meus olhos te quiseram. o corpo te quis mais que os olhos. no clima de banquete meus passos se alentaram para que me alcançasse. e teus braços cantaram em meu encontro .

banquete sim, mas pós-moderno. você não se atentou. fez-se nuvem e eu deserto. ou o avesso. tudo o que abundava na mesa não era mais que instante. sumia. e mesmo assim -

noite longa. danço leve com minhas asas vermelhas. você: sofá, convite a piquenique matinal. eu, essa íris jovem e radiante. você era um jazz; eu, stand up comedy. era eu a sede e você queria ser rio. até podia saciar-me se assim eu desejasse. atravessei-te em mim. mas você não percebeu: quis-te como quem precisa de copo em noite de festa (banquete pós-moderno),

descartável. do presente, captei apenas os adornos da embalagem, o mistério do de dentro. se houvesse felicidade ou pingente banhado, pouco importava. a beleza da forma das nuvens, não seu conteúdo de chuva. a-
cumulus,

(como explicar minha necessidade, não de água, mas de copos? com alguns demorei-me mais que o preciso às mãos.) você, o rio.

fluía. a noite, a água, a areia, o banquete. não estava mais comigo. estava em mim (nuvem medíocre). meus braços cantaram o teu adeus. então senti todo o lixo sob meus pés.

isto posto

amor:
ontem, silêncio que cobria meu corpo;
hoje, grito que ecoa no súbito vazio da cama.

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

(sem título. da série "salão de festas da palavra")

vem
a noite, cheia de confetes, canta nos olhos. a música ri em ouvidos solitários que andam sem sul. hoje é festa. a brisa, um chamego amigo. as luzes todas enfeitam este corpo que te chama. eis meu convite.

hoje é festa e alegria será quando os céus encontrarem-se e os chãos se perderem (dança de loucos que à madrugada se revelam). o tempo é ameno e de lágrimas, mas também de boa gargalhada. vem

que é a hora do presente. amanhã, o sol. ontem, só chuva. hoje,  esta imensa flor que desabrocha em meu peito. é sua.

o pássaro dança vermelho no céu, à espera de você chegar, pra enfeitar minha janela.

Aguardo.



(acho que isso cai bem com o final de Asas do Desejo)

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Resposta

(ao Thi.
algumas de nossas discussões dão flores. Eis uma delas.)

melancolia
às vezes a própria terra,
outras o adubo dela.
lótus que nasce em charco
planeta que a tudo encerra.

um livro de clarice,
o próprio riobaldo tatarana,
um blues azul,
uma dança cigana.

é também falta e silêncio.
tarde de domingo e
madrugadas sem sono
conversas com o espelho
dias de outono.

e inverno.
corpo pesado, pêlos em riste.
talvez um riso amarelo
e olhar baixo,
louco e inquieto.

mas sobretudo certeza
de que é o que prepara a terra:
semente escondida na flor
donde surgirá a primavera.

domingo, 24 de agosto de 2014

(sem título. da série "salão de festas da palavra")

pássaro vermelho que dança no céu
cantou em meu peito por toda a noite mal dormida.

suspeito que se inspira nos sonhos que me roubou.

Poética

não quero verso.
quero prosa corajosa que tente atar em linha única todas as pontas e os nós da poesia.

domingo, 17 de agosto de 2014

A Deriva

barquinho que agora vaga no mar calmo passou por tempestade que pôs medo até em monstros abissais, daqui pra cá, dali pr'além, sem poder voltar, longe de porto de píer de cais, noites afora, dias adentro, grafite elas, eles cinza, molhados todos de lágrimas água e sal, e segue, e sangue, e segue aqui ali além, não aquém, fosse ser vivo, o barquinho, seria toupeira em terremoto, mar turvo, tons de negro e gris, por um nada se agita, e a tempestade foi das grandes que nunca ninguém viu, só relatos, marinheiros que aumentam e inventam.
agora é calma. o céu, anil infinito. a água, um grande espelho azul-sólido e eterno. os ventos esqueceram-se de batalhar: tiram um descanso na manhã que acorda ainda sonolenta. o sol é grande e amarelo, e sobe no céu como quem não tem nada a fazer a não ser olhar minucioso a paisagem. é mar. por todos os lados: mar. até onde a vista desiste de alcançar. sem nem sonho de areia branca ou colorida falésia. nada se mexe sob e sobre a superfície líquida. nem o barquinho. principalmente ele. o ar quente e tenso parece morto. e seu corpo pesa. pesa e mais imobiliza. o sol continua a lenta escalada. e nem ainda é meio-dia.



sábado, 9 de agosto de 2014

Frio e flores

pro meu amigo, meu irmão, Alê

Ainda que meus olhos insistam em mostrar invernos, seu carinho faz-me florescer primaveras no peito.

segunda-feira, 30 de junho de 2014

"Sertão: estes seus vazios" ou dos sentimentos traduzidos nas palavras dos Grandes (nada a declarar²)

"(...) Mudei meu coração de posto. E a viagem em nossa noite seguia. Purguei a passagem do medo: grande vão eu atravessava.

A tristeza. Aí, o Reinaldo, na paragem, veio para perto de mim. Por causa da minha tristeza, sei que de mim ele mais gostava. Sempre que estou entristecido, é que os outros gostam mais de mim, de minha companhia. Por que? Nunca falo queixa, de nada. Minha tristeza é uma volta em medida; mas minha alegria é forte demais. Eu atravessava no meio da tristeza, o Reinaldo veio. Ele bem-me-quis, aconselhou brincando: - "Riobaldo, puxa as orêlhas do teu jumento..." Mas amuado eu não estava. Respondi somente: - "Amigo..." - e não disse nem mais. Com toda minha cordura. Mas, de feito, eu carecia de sozinho ficar. Nem a pessoa especial do Reinaldo não me ajudava. Sozinho sou, sendo, de sozinho careço, sempre nas estreitas horas - isso procuro. O Reinaldo comigo par a par, e a tristeza do medo me eivava de a ele não dar valor. Homem como eu, tristeza perto de pessoa amiga afraca. Eu queria mesmo algum desespero.

(...)
Amigo, para mim, é só isto: é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual o igual, desarmado. O de que um tira prazer de estar próximo. Só isto, quase; e os todos sacrifícios. Ou - amigo - é que a gente seja, mas sem precisar de saber o por quê é que é. Amigo meu era Diadorim (...)"

Grande sertão: veredas
João Guimarães Rosa

terça-feira, 17 de junho de 2014

Somente Clarice (ou nada a acrescentar)

"Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi. E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive: duas pernas. Sei que somente com duas pernas é que posso caminhar. Mas a ausência inútil da terceira me faz falta e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa controlável por mim mesma, e sem sequer precisar me procurar.
(...)
O que eu era antes não me era bom. Mas era desse não-bom que eu havia organizado o melhor: a esperança. De meu próprio mal eu havia criado um bem futuro.
(...)
Todo momento de achar é um perder-se a si próprio.
(...)
No meu mudo pedido de socorro, eu estava lutando era contra uma vaga primeira alegria que eu não queria perceber em mim porque, mesmo vaga, já era horrível: era uma alegria sem redenção, não sei te explicar, mas era uma alegria sem a esperança."


A paixão segundo G.H
Clarice Lispector

domingo, 8 de junho de 2014

quarta-feira, 21 de maio de 2014

filosofinha

Sempre admira-se a quem se ama.
Mas não
necessariamente
ama-se a quem se admira.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Para o dia deixar de ser

"Como se doma a alma
de quem carrega cavalos
no peito?"
(Michele Santos)

Hoje (só hoje)
queria ser daqueles poetas
que escrevem arco-íris.

domingo, 4 de maio de 2014

Das falhas no tempo

Sonho um dia ter lido
Luandino
domingo
à cama deitado
em alto sussurro
enquanto sua cabeça repousava
sobre meu peito descoberto.

domingo, 6 de abril de 2014

Desassossego de Bernardo, ou era meu?

Cansado de só dizer boa noite.
Quando voltarei a dizer, numa manhã de estação qualquer,
bom dia?

Cansado de só dizer adeus.
Quando voltarei a dizer, findado um longo domingo de espera,
bem-vindo?

sexta-feira, 28 de março de 2014

Perguntas (retóricas) de um homem que questiona seus privilégios

Já nos disseram que precisamos raspar os pêlos, cuidar do cabelo e do corpo e se preocupar com as rugas?
Já nos indicaram a roupa que devemos vestir, como nos comportar?
Já nos pediram para sentar de pernas cruzadas?
Nossos corpos já foram objeto de desejo em propagandas de carro e de cerveja?
Precisamos ser bonitos e gostosos para sermos ouvidos?
Sugeriram alguma vez que nossa raiva ou estresse ou qualquer outro sentimento tivesse ligação com alguma causa biológica - TPM?
Já nos disseram que, para sermos completos, era necessário termos filhos?
Já culparam o nosso sexo pelas barbeiragens no trânsito?
É comum sermos assediados na rua, mesmo andando sem camisa ou de cueca samba-canção?
Aliás, já assobiaram ou gritaram baixarias para nós, justificando que gostamos dos "elogios"?
Nossa bunda é olhada na rua como se fosse um pedaço de carne a ser devorada?
Já disseram que precisávamos de um vagão especial em trens para não sermos assediados (como se fôssemos nós os culpados)?
As roupas que usamos (ou a falta delas) já foi considerada convite a uma apalpada, um encostão, uma encoxada?
Quantas vezes já fomos encoxados em ônibus?
Já andamos de madrugada, sozinhos, com medo de sermos estuprados?
Alguém do nosso gênero já foi culpabilizado, aliás, por uma violência que sofreu, só porque estava com uma roupa "inadequada"?
Já nos classificaram em grupos de "pra casar" e "pra curtir"?
Somos chamados de "vadios" quando temos várias parceiras?
Somos condenados por transar no primeiro encontro?
Temos quantos casos de fotos íntimas de espécimes do nosso gênero vazadas na internet?
Temos uma religião que tivesse nos condenado à inferioridade e justificasse nossa submissão?

Só nos disseram que não devíamos chorar, porque isso é coisa de mulherzinha; que devíamos pegar quantas mulheres fossem possível (e contar depois aos comparsas), e que devíamos espancar qualquer homem que se comportasse como mulher... É. É a mulher que tentamos matar em cada homossexual que apanha.

Se ainda falta clareza ao recado, vai a dica, papo reto: o primeiro passo para romper com o machismo é reconhecer os privilégios que temos só por sermos homens. O segundo é lutar por um mundo em que não haja distinções entre Santa-Marias e Madalenas.

quinta-feira, 13 de março de 2014

Enquanto vejo Medianeras pela terceira vez

(para o Rafa, o Ni e a Rose. a Luca e a Angélique. o Thi. e Ela )

É sobre mim.
É sobre quem sempre fui.
Não é sobre alguém.

Hoje vou crer no amor. Crença pura e simples. Sem teorias, academicismos ou reflexões demoradas. Sem pedantismos. Sem angustiar-me por não estar descrevendo as mazelas do mundo que me rodeia e exaspera, me incitando à luta. E não quero falar desta luta.

É sobre o amor. Crer na importância de falar dele. Desordenadamente. Abstendo-se das regras e dos cuidados estéticos que sempre me colocam medo. É o amor prosaico, que sobe do rés do chão, escala as paredes, brota no concreto cinza e desalmado da cidade. Que anima a cidade.

Crer no amor sem máscaras, sem rótulos, sem receitas para dias bons. No amor-essência que sempre está, sempre é. No amor-presente, inominável, inclassificável, sutil e singelo como só o nascer e o morrer do sol sabem ser.

Crer para salvar aquilo que quase matei em mim, o que sempre fui. Para continuar a ser e a caminhar. Crer para retomar a busca do amor que se metamorfoseia em pessoa, carne, ossos e alma.

É crença no amor que vem com a primavera, depois de curtos outonos e invernos longos.

Hoje em diante: do amor fazer armadura para os dias de luta, chuva para as tardes quentes, abrigo para as noites sem lua. E o mais importante: do amor fazer estrada que, não importando onde se cruza ou quando se bifurca, sempre leva ao mesmo fim.


(crédito da imagem:  "Medianeras: Buenos Aires en la era del amor virtual". Extraído de: http://www.popscreen.com/v/6ntEL/teaser-medianeras)

domingo, 2 de março de 2014

das lições que se aprendem enquanto caímos

Há tempos que não escrevia aquelas sentimentalidades. Já não sabia quando renunciara à escrita como forma de expressão, talvez no momento impreciso em que seu coração começou a bater no ritmo diário do trânsito-trabalho-casa. Foi preciso que o fim de um grande amor se fizesse presente para que pudesse, então, encontrar-se consigo e voltar a ouvir a doce percussão que emanava de seu peito, como outrora, destoando das canções a que se acostumara.

Encontrou-se novamente com sua escrita. Mas não eram cartas de amor, ridículas como todas são. Ainda eram suturas preparadas às pressas para estancar as feridas que insistiam em não cicatrizar, enquanto o tempo não remediasse a situação de vez por todas.

Até que o momento da amorosa carta, aquelas sentimentalidades, retornou. Carregou-a das cores mais vibrantes, como a morte multicor; selecionou verbos e adjetivos um a um; teceu a melhor malha como há muito não fazia.

Então parou. Buscou nos salões escuros da memória as lembranças de outras cartas: a semelhança das cores e formas o impressionaram tanto que logo um medo alojou-se sub-reptício em seu peito. No entanto, tal medo mostrou-se apenas sinal para a mudança de tom na música.

Versado nas artes do origami, transformou a folha em suas mãos em belo pássaro. Esperou o primeiro vento matinal e soltou a criatura como quem liberta alguém que fora preso injustamente. O pequeno ser titubeou por instantes ao sabor da brisa, desajeitado e desarmonioso, até que suas asas encontraram um ritmo, abrindo-se de par em par para ganhar os primeiros raios de sol da manhã.
(crédito da imagem: http://mateusgandara.wordpress.com/)

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

notas sobre um prenúncio

(sob forte influência do irmão de poesia Ni Brisant)


Adamastor buscava a felicidade em mantras e canções de amor, enquanto o silêncio da casa fazia-lhe sombra e companhia.

***

Há dias em que até a chuva promete.
Mas não vem.

***

Meu verso anda meio bala perdida: atirado à esmo, em busca de um lugar pra se alojar.


sábado, 15 de fevereiro de 2014

Passe adiante





Ouvi em silêncio seu soluçar, e vi igualmente neste idioma sem palavras as suas lágrimas. Senti-lhe quando o lápis grifava-me revelando o melhor de mim, cócegas que carregarei para sempre, maneira de me completar e me escrever em si. Mas era chegado o momento inevitável da separação, meu destino. Devo partir. Sei porém, pelo sabor da lágrima a me banhar, que estarei sempre com ele, pedaço de felicidade que carrego comigo até encontrar um novo amigo.

Fechei-o com uma felicidade imensa e real que me transbordava. Precisava retribuir os momentos bons que passamos juntos, por isso, deixei-o disponível sobre o banco vazio do ônibus. Separações são sempre difíceis, eu sei, mas era o mínimo que poderia fazer: permitir que ele viajasse outras pessoas, sua maior alegria.

Por um instante a solidão causou-lhe medo. E se ninguém o encontrasse? E se fosse parar num daqueles achados e perdidos da vida, sem o calor de uma mão a folhear-lhe, de olhos a devorar-lhe cada palavra? 

De fato, foi realmente parar numa sala fria junto com tantos outros objetos que perderam a identidade e viu durante muito tempo muitos deles desaparecem. Até que uma jovem de olhos assustados o pegou e escondeu-o apressadamente em sua bolsa. Mas essa é uma outra história e terá de ser contada em outra ocasião.


(crédito da imagem: http://www.comicforum.de/showthread.php?48121-Scribble-Sammelthread/page512)

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Últimas palavras

O tiro foi certeiro. Assim era melhor. Antes, porém, de evadir-se por completo deste mundo, sentiu os últimos versos escoarem pelas veias já abertas, já desligadas do corpo e do cérebro que, em tempo, tateavam nova estrada. Assim era melhor. Concentrou-se então e bebeu cada palavra. Elas, as palavras, não lhe pertenciam, ou pertenciam a ele e a todos os outros como ele: situações semelhantes cantam canções semelhantes. Por isso, no derradeiro instante, vertiam. Para lembrar aos esquecidos que todos são iguais na dor. Para trazê-las em seu bombear quando renascessem.

Antes do verso e acorde final, uma ligeira felicidade, a universal, nunca acompanhada de riso fácil e comumente confundida com uma espécie de tristeza, ecoou simples e sépia, alterando as cores do giroflex. Assim era melhor.

Suspirou. O último antes do provável renascer. Que não tarda. Os raios ruivos do sol já apontam no horizonte da manhã.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

das brincadeiras inúteis da internet


"- Não. - disse alto, falando consigo mesmo. - Tenho de poupar minhas provisões. Quem sabe quanto tempo isso vai durar."

A história sem fim - Michael Ende (SP: Martins Fontes, 2010)

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Advertência

Comecei um soneto
como quem procura em correntes um caminho.
Eis, porém, que o sol rugiu vermelho na aurora:

A estrada é outra, poeta.
Sinta o vento e
lance ao olvido o tempo de prisões.