sexta-feira, 28 de março de 2014

Perguntas (retóricas) de um homem que questiona seus privilégios

Já nos disseram que precisamos raspar os pêlos, cuidar do cabelo e do corpo e se preocupar com as rugas?
Já nos indicaram a roupa que devemos vestir, como nos comportar?
Já nos pediram para sentar de pernas cruzadas?
Nossos corpos já foram objeto de desejo em propagandas de carro e de cerveja?
Precisamos ser bonitos e gostosos para sermos ouvidos?
Sugeriram alguma vez que nossa raiva ou estresse ou qualquer outro sentimento tivesse ligação com alguma causa biológica - TPM?
Já nos disseram que, para sermos completos, era necessário termos filhos?
Já culparam o nosso sexo pelas barbeiragens no trânsito?
É comum sermos assediados na rua, mesmo andando sem camisa ou de cueca samba-canção?
Aliás, já assobiaram ou gritaram baixarias para nós, justificando que gostamos dos "elogios"?
Nossa bunda é olhada na rua como se fosse um pedaço de carne a ser devorada?
Já disseram que precisávamos de um vagão especial em trens para não sermos assediados (como se fôssemos nós os culpados)?
As roupas que usamos (ou a falta delas) já foi considerada convite a uma apalpada, um encostão, uma encoxada?
Quantas vezes já fomos encoxados em ônibus?
Já andamos de madrugada, sozinhos, com medo de sermos estuprados?
Alguém do nosso gênero já foi culpabilizado, aliás, por uma violência que sofreu, só porque estava com uma roupa "inadequada"?
Já nos classificaram em grupos de "pra casar" e "pra curtir"?
Somos chamados de "vadios" quando temos várias parceiras?
Somos condenados por transar no primeiro encontro?
Temos quantos casos de fotos íntimas de espécimes do nosso gênero vazadas na internet?
Temos uma religião que tivesse nos condenado à inferioridade e justificasse nossa submissão?

Só nos disseram que não devíamos chorar, porque isso é coisa de mulherzinha; que devíamos pegar quantas mulheres fossem possível (e contar depois aos comparsas), e que devíamos espancar qualquer homem que se comportasse como mulher... É. É a mulher que tentamos matar em cada homossexual que apanha.

Se ainda falta clareza ao recado, vai a dica, papo reto: o primeiro passo para romper com o machismo é reconhecer os privilégios que temos só por sermos homens. O segundo é lutar por um mundo em que não haja distinções entre Santa-Marias e Madalenas.

quinta-feira, 13 de março de 2014

Enquanto vejo Medianeras pela terceira vez

(para o Rafa, o Ni e a Rose. a Luca e a Angélique. o Thi. e Ela )

É sobre mim.
É sobre quem sempre fui.
Não é sobre alguém.

Hoje vou crer no amor. Crença pura e simples. Sem teorias, academicismos ou reflexões demoradas. Sem pedantismos. Sem angustiar-me por não estar descrevendo as mazelas do mundo que me rodeia e exaspera, me incitando à luta. E não quero falar desta luta.

É sobre o amor. Crer na importância de falar dele. Desordenadamente. Abstendo-se das regras e dos cuidados estéticos que sempre me colocam medo. É o amor prosaico, que sobe do rés do chão, escala as paredes, brota no concreto cinza e desalmado da cidade. Que anima a cidade.

Crer no amor sem máscaras, sem rótulos, sem receitas para dias bons. No amor-essência que sempre está, sempre é. No amor-presente, inominável, inclassificável, sutil e singelo como só o nascer e o morrer do sol sabem ser.

Crer para salvar aquilo que quase matei em mim, o que sempre fui. Para continuar a ser e a caminhar. Crer para retomar a busca do amor que se metamorfoseia em pessoa, carne, ossos e alma.

É crença no amor que vem com a primavera, depois de curtos outonos e invernos longos.

Hoje em diante: do amor fazer armadura para os dias de luta, chuva para as tardes quentes, abrigo para as noites sem lua. E o mais importante: do amor fazer estrada que, não importando onde se cruza ou quando se bifurca, sempre leva ao mesmo fim.


(crédito da imagem:  "Medianeras: Buenos Aires en la era del amor virtual". Extraído de: http://www.popscreen.com/v/6ntEL/teaser-medianeras)

domingo, 2 de março de 2014

das lições que se aprendem enquanto caímos

Há tempos que não escrevia aquelas sentimentalidades. Já não sabia quando renunciara à escrita como forma de expressão, talvez no momento impreciso em que seu coração começou a bater no ritmo diário do trânsito-trabalho-casa. Foi preciso que o fim de um grande amor se fizesse presente para que pudesse, então, encontrar-se consigo e voltar a ouvir a doce percussão que emanava de seu peito, como outrora, destoando das canções a que se acostumara.

Encontrou-se novamente com sua escrita. Mas não eram cartas de amor, ridículas como todas são. Ainda eram suturas preparadas às pressas para estancar as feridas que insistiam em não cicatrizar, enquanto o tempo não remediasse a situação de vez por todas.

Até que o momento da amorosa carta, aquelas sentimentalidades, retornou. Carregou-a das cores mais vibrantes, como a morte multicor; selecionou verbos e adjetivos um a um; teceu a melhor malha como há muito não fazia.

Então parou. Buscou nos salões escuros da memória as lembranças de outras cartas: a semelhança das cores e formas o impressionaram tanto que logo um medo alojou-se sub-reptício em seu peito. No entanto, tal medo mostrou-se apenas sinal para a mudança de tom na música.

Versado nas artes do origami, transformou a folha em suas mãos em belo pássaro. Esperou o primeiro vento matinal e soltou a criatura como quem liberta alguém que fora preso injustamente. O pequeno ser titubeou por instantes ao sabor da brisa, desajeitado e desarmonioso, até que suas asas encontraram um ritmo, abrindo-se de par em par para ganhar os primeiros raios de sol da manhã.
(crédito da imagem: http://mateusgandara.wordpress.com/)