domingo, 23 de julho de 2017

O medo

Em verdade temos medo.
Nascemos escuro.
As existências são poucas:
Carteiro, ditador, soldado.
Nosso destino, incompleto.

Carlos Drummond de Andrade





O medo encolheu a cidade. Estreitou as ruas. Alojou-se em todos os rostos estranhos, forrando-os de uma familiaridade inquietante. Passou a habitar as esquinas, os bares, as salas vazias de cinema, os eventos esporádicos. Impregnou a pele. Está no vento, nas palavras e no silêncio. Vai a parques, shows, manifestações. Ri de nossos anseios. Engorda com o vacilo dos passos errantes. O medo entrou nas casas e pintou as paredes. Assentou-se sobre os móveis como poeira. Ouvimos o seu passear pelos canos da hidráulica e elétrica. Nas roupas do varal, vemos o medo espreguiçando seus tentáculos. Não precisa mais do escuro: revela-se à luz no jantar, ao sol do amanhecer que entra pela janela embaçada. Escorre na água do chuveiro. As roupas no armário são escolhidas pelo medo. As meias e cuecas, o gorro e a boina, o medo esteriliza. Irmanados, sentimos o medo sentado à mesa. Come do nosso prato, deixa-nos o resto. E fraquejamos. Emagrecemos. Cansados, pousamos a cabeça sobre o travesseiro e o medo está lá, deitado ao lado, um corpo ausente que vela o nosso sono. Encobre os sonhos que não lembraremos quando acordar. Já não nos seca, o medo. Ao contrário, nos enxarca de suor, da água que flui de um duto estourado na avenida. Já não nos paralisa: caminha conosco, um amigo velho. Na memória, o medo deslizou sub-reptício e pôs seus ovos. Eclodiu em todas as lembranças plantadas. Nadou nos rios de histórias passadas e alcançou os desejos que voavam distraídos. O medo transmutou-se em som de pássaro, em mormaço, em cachaça, em fumaça de palo santo. O medo, um convite para dança. Eu não danço. Mas arrisco.

domingo, 2 de julho de 2017

Aguar o tempo

O silêncio não é céu azul em manhã seca de inverno.
O silêncio é nuvem branca.
O silêncio úmido vaga alheio aos que debaixo olham.

E olhamos.

Com os mesmos olhos imaturos da criança, olhamos.
A gente vê o algodão branco e desenha neles.
Como em folhas - nuvenspelho.

Queira o bom deus que o Climatempo esteja certo e caia a chuva no fim da tarde.