domingo, 29 de março de 2015

barros. brincando de ser manoel

"vi o açude sem ter água
e secou até a mágoa
e os meninos sem comer, sem beber, sem viver"
(Nino Miau, Sol do cangaço)


amor não é,
faz. brotar setembros, adormecer marços.
lembrança sim: nuvem carregada. cai uma, duas vezes no domingo.
mágoa, palavra molhada, encharcada na primeira bátega.
ódio é sol e céu aberto. seca das nascentes.
rancor é chão rachado, sem restolho e sombra de novo aguaceiro.
amigo é sempre água de cacimba.

saudade, um sussurro soprando a segunda chuva.

quarta-feira, 18 de março de 2015

alerta-vermelho

(poema-crônica inspirado em cena da peça O errante, da Brava Cia.)

      o lado de lá gosta de associar
      em metonímico processo
      o verde, às florestas;
      o amarelo, às riquezas;
      o azul, ao céu anil;
      e a faixa branca é a corrente do
progresso.
      acreditam que assim nascemos nação

eis, porém, que uma dúvida surge:
e o vermelho do sangue indígena
cobrindo o chão paulista
pintado por bandeirantes?
do sangue grudado
nos filhos nascidos
de violações?
do corte das árvores, do corte das orelhas
do corte dos laços com a terra-mãe?
o sangue das costas
depois de açoitada
a pele negra -
que escorre pelo dorso, pelo tronco, pelo barro batido?
o sangue que desceu pelo litoral
vindo do norte
pra levantar essa cidade?
o sangue que ainda corre nos morros
muros, favelas, becos e bares?

quando a paulista vestiu verdeamarelo
o sinal vermelho acendeu em meu olho.
do lado de cá andamos dispersos.

se é verdade que falta uma bandeira que nos
una
não tenhamos dúvidas de qual será sua cor
nem da mão com que iremos empunhá-la.

segunda-feira, 16 de março de 2015

Porque ando mau dos olhos





Teu riso grudou na minha retina, deixou vermelha a transparência da conjuntiva. Até parece romantismo dizer isso, mas não, não é. Você me deixou doente. E bem quisera eu que a doença fosse só dos olhos.

domingo, 8 de março de 2015

Sem rosas, hoje

Enquanto só eu puder andar como quero nas ruas
- sem camisa, de samba-canção, fora de forma, com pêlos nas pernas e braços;

Enquanto só eu puder voltar de madrugada sozinho pra casa
- sem medo de ser violentado;

Enquanto só eu puder decidir sobre meu corpo
- assumir ou não filhos, ter prazer na hora que quiser;

Enquanto só eu tiver direito ao descanso em casa
- sem precisar me preocupar com a louça, a roupa, as crianças;

Enquanto só eu tiver o direito de transar com quem quiser
- sem ser chamado de vagabundo, vadio, vaco, puto, piranho, cachorro, pirigueto, facinho, rodado -etc;

Enquanto eu, ainda,
ganhar os melhores salários
tiver os melhores cargos
compuser mais de 80% dos cargos políticos
comandar religiões que me beneficiam, leis que me favorecem

Enquanto, ainda, eu não for culpabilizado
pelo estupro;
pela encoxada no ônibus;
pelo aborto praticado;

não posso, não devo
oferecer rosas.