quarta-feira, 1 de maio de 2013

Cortina Nova

Se voltar desejos
ou se eles foram mesmo
lembre da nossa música

Se lembrar dos tempos
dos nossos momentos
Lembre da nossa música
(Música - Vanessa da Mata)



Era feita em duas camadas, uma de linho, em branco maculado, e a outra em seda rústica, mais cândida. O vento roçava-lhe todos os dias, aos primeiros olhares do sol ou ao dormir da tarde. Sua alvura impura completava a harmonia do ambiente, contrastando com a madeira escura do chão e tornando ainda mais suave a maciez bege das paredes.
Nos primeiros dias ouviu-se apenas o som árcade dos pássaros. E ondas de uma represa nos arredores. Assim: o vento abria-lhe e os sons entravam, como que a inundar a sala. Bem-te-vis, sabiás, não se sabia ao certo, e a água, evocando o mar distante.
Então vieram os acordes da Moonlight Sonata, que permaneceram até o fim. E também ecoavam alguns de Wagner, o romântico. E outros. Já os pássaros e o mar haviam passado. Os novos sons escondiam-se nos livros do escritório, entre os mantimentos do armário, em mangas de camisa no varal. Dominaram a casa por  longo tempo, confirmando a sua potência e beleza.
Até que o silêncio fez ouvir-se. E não seria a única vez. O vento soprava, as cortinas se abriam e o mundo interior quietava-se. Tudo era  um nada silencioso, quase mortífero. Mesmo a sonata beethovenniana prolongava-se no vazio entre um e outro movimento. Os móveis funcionavam como caixas acústicas a reproduzir o vazio que adentrava a janela.
A chuva rompia por vezes o silêncio. Bátegas amedrontavam as janelas. A tempestade ruidosa apegava-se aos eletrodomésticos, mesmo quando o sol brilhava intensamente lá fora. E um vozerio, em dissonância com a estrondosa água caindo, se apresentou, comprometendo a harmonia até então, e contrária à lógica, inabalada da casa.
Foi preciso remover as cortinas e substituí-las por novas. Num primeiro momento fez-se o silêncio, mas não o mesmo de antes: este era embrionário. E, após, quando as removeram de seu suporte de carvalho, milhares de sons escorregaram por suas camadas: pedaços de chuva, adágios, palavras soltas, pássaros - bem-te-vis, sabiás, ou outros - e o som do mar, ainda distante.

Um comentário:

Lila Bric disse...

Que conto lindo! Acho que foi o melhor que eu já li...muito emocionante e sensível! Fiquei encantada!As imagens da cortina ao vento, agora estão na minha mente, quando fecho os olhos! Parabéns!