(estória para se ouvir ao som de Todos os Olhos, do Tom Zé)
Eles
foram cumprimentados. Um, responsável por um tiro no olho, na boca, três no
tronco (peito direito e esquerdo e boca do estômago), um no membro inferior; o
outro, por três tiros nas pernas, dois na barriga e um na glote; o terceiro,
por fim, dera o tiro na testa, o que fez o sangue espirrar e manchar a aba
branca do boné que escondia o rosto alvo do corpo violado. Eles riam, aceitavam
os aplausos. Carregavam mochilas nas costas. Através de uma delas, ligeiramente
aberta – pertencente ao responsável pelo tiro na testa –, se via pedaço de um
tecido uniformemente cinza. Alguém falava sobre a coragem dos distintos moços.
Ouviu-se um agradecer a deus por estarem naquele momento no ônibus, voltando
para casa depois de um dia de serviço árduo, o uniforme provavelmente na
mochila que carregavam, o instrumento de trabalho, porém, ainda na cintura.
Sorte, disseram, pois deu tempo de descer do ônibus e acertar a perna, fazendo
o corpo tombar na calçada, próximo do asfalto. Depois foi só correr à caça
ferida e terminar o serviço. Pena que aquele outro já se via longe, sem chance
de ser pego. Estavam em volta do corpo, exibiam suas armas salvadoras, não
viram nenhuma garrafa de leite estilhaçada, apenas a mancha negra que crescia e
sujava a calçada recém reformada.
Ela
já estava aliviada. Quando ouvira o barulho do ônibus se aproximando, não
exitara ao atirar-se em sua frente, pois julgava ser melhor morrer daquele
jeito do que pelas mãos ásperas e asquerosas daqueles dois sujeitos pretos,
eram pretos?, sempre são pretos. Sorte ou azar, o ônibus parou em cima de seu
corpo, sem lhe causar nenhum mal. O susto, provavelmente ocasionado pela
presença quase física da morte, a fez parar, o que permitiu que os elementos a
alcançassem. Arrastaram-na, disse, para a viela sem iluminação ali perto,
levantaram sua saia branca, rodada. Um a prendia pelo pescoço, quase lhe
privando a entrada de ar. O outro rasgou a calcinha e, ferido com um chute da
perna que se debatia, revidou com um tapa violento na face direita umedecida de
lágrimas desesperadas e um soco na boca do estômago frágil. Não fosse o indivíduo
a segurá-la, seu corpo tombaria indefeso no chão. Sentiu quando sua blusa foi
escancarada e seus seios apertados com violência e lambidos por uma boca
selvagem e fétida e nojenta. Mas o ônibus havia parado e algumas pessoas
desciam. E ela se viu salva quando eles a soltaram e correram para fora do beco
escuro. Um atirou-se no meio dos veículos que passavam com velocidade reduzida,
pois o coletivo parado em local inesperado obrigava-os a andar com cautela. O
outro, com medo de ser pego por um dos carros que passavam, correu pela margem
da avenida. Ela foi amparada por outras mulheres compadecidas; viu que uma
multidão corria pela calçada, mais para frente. Ouviu um som áspero, monocorde,
rápido. A este se sucederam doze outros baques iguais. Pediu para ser levada ao
local dos tiros. Encontrou apenas um corpo no meio-fio, o sangue escorrendo
para o asfalto, sem nenhuma garrafa de leite estilhaçada. Também cumprimentou
aqueles que fizeram o que ela não poderia ter feito. Transeuntes se juntaram a
multidão do coletivo e já ocupavam dois terços da avenida. Os carros passavam
lentamente e demoravam ainda mais para entender o que havia ocorrido.
Ali
perto, um motorista discutia os males do trânsito com o seu patrão, sentado no
banco de trás, enquanto observavam descontraidamente a movimentação da qual se
aproximavam.
(conto perdido, provavelmente de 2008)
Nenhum comentário:
Postar um comentário