Os que me conhecem sabem da minha mania em levar para qualquer viagem que faço meu "diário de bordo", isto é, um registro de acontecimentos, das minhas impressões sobre os lugares que visitei. É a forma que encontrei para imortalizar os momentos vividos, sejam eles agradáveis ou não (se pretendo ser uma pessoa em constante aprendizado, não posso me furtar aos conhecimentos proporcionados por aquilo que não desejo ou acho ruim).
O recente carnaval mereceria algumas palavras por sua singularidade em minha vida. E eu não as deixei de registrar. Todavia, e isto é um fato inusitado, encontrei perdido no calçadão de São Conrado uma folha de papel abandonada, ao que parece, furtada do caderno de alguém, já um tanto pisoteada, com resquícios de água do mar e areia. Analisando seu conteúdo, é óbvio perceber que se trata de uma página de diário, ou de uma daquelas notas que se faz para registrar sentimentos - eu as fazia muito no passado. Hoje, nem tanto.
Ora, tamanha coincidência não poderia ser deixada passar em branco; afinal, sou o único a escrever sobre os dias de viagem, os refúgios de que tanto necessito? A folha perdida, encontrada ao acaso por mim, deu-me uma ideia bastante curiosa: e se eu editasse o relato, ou melhor, se eu misturasse o seu conteúdo com o meu próprio, de modo a fazer deles duas peças que se encaixam? Pensando em questões de estilo de autor, não há muitos problemas, afinal, os relatos não são tão diferentes uns dos outros. O que de fato seria uma questão a se pensar seria a da identidade do autor: analisando alguns aspectos da folha achada, é possível supor de que se trata de uma mulher escrevendo. No entanto, como serei eu o autor da façanha de unir os textos, caberia a mim torná-los uma peça única. Ou não: penso agora que o melhor a fazer é compor os relatos de modo a evidenciar as singularidades de cada um - as quais, imagino eu, irão mostrar o quanto são semelhantes. Há a inda uma outra questão: ao transformá-los em uma coisa só, não estarei deixando de lado seu conteúdo (auto)biográfico, isto é, negando sua validade como algo real? Sim, é evidente, porém tal pergunta já deveria ser colocada antes de escrevermos: qualquer relato já não é uma invenção? Deixo os rodeios e vou-me ao trabalho:
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O Rio de Janeiro é lindo, como nunca tinha visto, e o carnaval é o avesso do que sempre imaginei. Os dias passados aqui foram coloridos, mágicos, especiais. Mas nem assim consegui esquecer aqueles meus sentimentos que sempre me acompanham. O Rio sempre foi meu local de fuga, desd'eu menino. Vir para cá me traz a ideia de descanso, de convívio em família, e até o calor tão singular que impede o sono e nos amolece o dia me parece agradável. Mas estar aqui significa principalmente um rompimento com o cotidiano, máquina diária monotonando a existência. Canso-me muito do que sou, do que me transformo enquanto Cronos devora a minha vida. Canso-me dos sentimentos sem sentido que me acometem, dos vazios infinitos que me enredam, da angústia tão antiga e íntima que só pode ser eu mesmo. Viajar me permite conhecer minha própria angústia, conversar com ela, entendê-la. Mas estar com ela é estar só. Preciso, por isso, administrar a parcela de mim que precisa estar em contato com os companheiros e aquela que ficará em companhia da angústia. Viajar me corta em dois. Acho que estar nesta constância de ser duplo é que gera minha imobilidade, maior mal. Estar nesse encontro de forças me inutiliza. Penso na facilidade e comodidade de deixar-se tombar para um lado. Fazer isso, porém, é me negar a identidade.
Esta cidade é, como a minha São Paulo, uma cidade de contrastes. As praias são maravilhosas, as paisagens deslumbrantes, e em muitos locais você sente a harmonia entre natureza e a obra humana. Mas o que está distante da região mais abastada (pelo menos até onde conheci) é feio, sujo, fedorento. A cidade é muitas dentro dela mesma. Parece um pouco comigo. Sou pelo menos duas dentro de mim. Estou aqui tão feliz, contente mesmo, mas há uma parcelinha, não muito pequena, que sempre chora e se sente deslocada.
Se eu pudesse ir embora e deixar toda a angústia seria quase um abandono de mim mesma. Ou seria como libertar-se de um casulo para se transformar em outro ser, o verdadeiro ser? Não penso em verdades absolutas: o Acacio que sou é um caleidoscópio das coisas que viveu: não há um verdadeiro Acacio por baixo das máscaras sociais que somos obrigados a vestir. Elas sou eu.
O Carnaval, o Rio, os dias quentes ficam para trás do tempo e do espaço. Às vezes a memória me trará os flashes da Lapa e de seus arcos brancos, suas escadarias multicores, de São Conrado, areia calma, forte mar. De sorrisos e do sorriso ingênuo e carinhoso, em barba por fazer. De olhos tristes e do medo de ser eu eu o motivo deles. Às vezes desejarei reviver cada segundo dos dias antes passados; outras quererei esquecê-los, apagá-los. Mas é certo que esses dias já fazem parte do meu relicário de pequenas dores e felicidades.
Os momentos evanescem com o andar do ônibus em direção ao Porto Seguro. Os sentimentos, estes continuam a latejar dentro disso a que chamam alma. Se pudéssemos reter na retina os momentos que nos acham, como fazemos com algumas imagens, talvez poderíamos explicar melhor a nós mesmos o que sentimos.
Já as palavras voltam aos seus lugares. Finda a viagem, o refúgio. Mas trago angústias e anseios novos, sufocados já em seu nascer. A ideia de Cronos sempre me persegue: o tempo a devorar seus próprios filhos, que somos nós mesmos. E eu também não faço como meu Pai? Todas essas dores, angústias e anseios, não sou eu a devorá-los, guardá-los na barriga? E se um dia um deles me despojar e virar rei? Não sei. Até lá estarei como sempre estive: revestido de minha couraça de estoicismo, permitindo-me certos rompantes de alegria, raiva, tristeza. Porém o grosso de todos esses sentimentos continuará represado até a queda deste titã.