segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Quadro Futurista, por A. B. S.

"'Cause everybody hurts

Take comfort in your friends"

R.E.M

Vejo-os sentados em umas tantas mesas de bar, juntas, aproximando as vontades, a bebida, a alegria. O garçom, conhecido já, traz o cardápio, anota os pedidos, embaraça-se com a bandeja e a falta de espaço.

Todos riem. Chamam-se. A infância retorna em brincadeiras, mas é logo afastada por um gole de vodka; crescemos todos afinal. O futuro é comemorado, os sonhos de um porvir são transformados em gritos de guerra. E há uma alegria triste no riso de alguém, a quem chamaremos Australiano. O riso sincero, revelador de sua personalidade acanhada, abre-se para dentro da alma, revelando-lhe um deserto de segredos guardados no coração encoberto de timidez e solidariedade. O maior segredo está sentado a alguns amigos de distância, os olhos buscam-no furtivamente, depois escondem-se em um copo de cerveja, vergonha da ousadia que tiveram. Vejo a mágica antiga do amor bonito, não há outra palavra, dos primeiros tempos, do alfa da adolescência, tempo de descoberta daqueles que não se encontraram na vida, da poesia fácil entornada sobre o papel, das maiores dores do mundo, porque o mundo é do tamanho do nosso coração, e nosso coração é só o amor que temos.

O mundo é outro, agora. Há o álcool, a volúpia o escárnio. As mesas acumulam copos esvaziados, desejos que bebemos, brindes que levantamos. Ao futuro. O Australiano talvez tema, o futuro sempre leva quem queremos que fique, amaldiçoando-nos com os piores encantamentos: o presente vira passado; o desejo, saudade; o apego, distância. O garçom retorna, novos pedidos, alguns querem que eu beba para destravar a língua. Alguém, cujo codinome será Felina, incita às brincadeiras, chama sempre ao Australiano, e depois aos outros, tantos, nas mesas cheias. Mais vodka, mais risos. Desenha-se no ar uma linha ligando ele a ela, será coisa da minha cabeça?, uma espécie de muda comunicação, que todos perceberam, tanto é que alteramos a configuração dos presentes. Um pede para que Felina ocupe seu lugar, próximo do Australiano. Ela refuta, consciente das intenções. Outro oferece ao Australiano uma cadeira próxima de Felina, ele ri, mas não sabe, ou talvez não queira, recusar a chance de estar próximo uma vez mais, quem sabe a última, dela.

Juntos, então, a Felina e o Australiano arriscam-se nos passos, desajeitados os dele, decididos os dela, de uma canção conhecida por todos. O ritmo não coincide com os corpos próximos, quiçá os corações dancem uma música que é só deles, ainda inédita, mas já ensaiada de alguns meses. Ou sou eu quem a estou compondo, a partir de fragmentos desta realidade que insisto em selecionar, para não me ver a mim, solitário entre muitos, alma cinza em meio ao mundo multicor.

As mesas se enchem de uma esperança tênue, leve, suave aos ouvidos. Cantamos. As alegrias culminam em uma dose de tequila. À Felina, ao seu futuro. E, como gesto a eternizar o momento, que por si só já seria inesquecível, um beijo, terno, amigo, em todos os presentes. Talvez o coraçãozinho do Australiano tenha dado um pulo no peito: os olhos bebem gulosamente um copo de qualquer bebida, enquanto o beijo percorre mesa a mesa, como um lastro de felicidade ascendente. A ele o gesto corrente significaria muito mais do que a amizade, o reconhecimento por parte dela pelos ombros, pela confiança depositada durante os dois anos de intensa batalha em busca dos sonhos, do futuro.

Ninguém sabe o que nos aguarda depois da linha do horizonte. As futuras etapas da vida poderão trazer outras pessoas e caminhos. Um novo amor pode estar ali, de jaleco branco, aguardando a Felina para um chopp. O Australiano talvez pense nisso enquanto, no final da mesa, aguarda o ingênuo beijo. Eu tento, preciso não enxergar o instante com o excesso de romantismo que sempre brota em mim, ainda que eu o sufoque com doses cavalares de Radiohead e niilismo. Só mais um pouco: ela precisa voltar, retornar ao ponto de partida, agora o fim, para alcançá-lo, o último. Em pé, a Felina inclina-se para sorver dos lábios dele uma ínfima demonstração dos desejos acumulados durante anos. Ela não sabe disso. Ou talvez saiba, estou de fora e o que faço é apenas encher o momento de paina agridoce. Sou feliz nesta fantasiação momentânea, quando o meu real é inventado para ter um sentido maior do que realmente tem.

Um comentário:

Mayra disse...

Nossa amor, ainda não tinha lido. Adorei. Você reconstruiu a cena lindamente.