domingo, 9 de janeiro de 2011

De Homens e Deus

Um dos meus maiores desafios quando da adolescência foi vencer certos impulsos os quais exigiam que eu combatesse veementemente tudo aquilo que eu julgava não ser a verdade – aquela cujo sentido transcendental que gostamos de lhe atribuir transborda de todas as suas sete letras. Se cristão católico, queria converter todas as almas perdidas pelo mundo; se religioso sem religião, queria que todos pudessem enxergar o deus que se manifesta na vida, na natureza, no menor detalhe (quer dizer: quem gosta dos detalhes é o diabo...); se ateu revoltado, queria derrubar todas as teorias sobre a existência do divino, apontar todas as falhas das escrituras sagradas.

Foi difícil encontrar em mim um ponto de equilíbrio, equalizador de ânsias tão juvenis – inteiramente justificadas pela tenra idade e casmurrice de quem as sentia. Encontrei-o, pois. O ateu que sou hoje não quer converter almas ao ateísmo, ou mostrar que não existe mais do que reações químicas ou forças físicas na vida, na natureza, nos detalhes, tampouco preocupa-se em divagar sobre teorias ou esmiuçar textos antigos buscando incongruências. O que restou daquela convicção da mal nascida juventude, quando esta ainda confundia-se com a inocência infantil, foi algo de maior valor do que a crença que se perdeu: o entendimento e aceitação da importância desta crença para o ser humano e para a humanidade. Há-de se entender que, mais importante do que a existência ou não de deus, é o valor que este conceito de ser divino tem para a sociedade. Tal conceito é norte para quem se encontra à deriva, baliza que indica os movimentos de quem a segue, ancoradouro para quem precisa descansar.

E não há quem, em algum momento, não esteja à deriva, ou à espera de uma ordem, ou precise de descanso. Nem todos, porém, apóiam-se no conceito de deus. É de se imaginar que estes devam sofrer, e muito, as conseqüências da descrença. O que deve se sentir quando se olha para “um céu tão longe/um deus tão longe/ou, quem sabe/para um céu vazio”? Parece óbvio, mas ninguém em sã consciência escolheria o caminho do sofrimento, desespero e desamparo. Não se trata, contudo, de uma simples escolha. Ninguém acorda de manhã e diz: “hoje estou com vontade de ser ateu”. É um processo que se dá no inconsciente, demora para ganhar forma. Até que esta crença – corrijo: ausência de crença – receba um nome que a distinga e a conceitue, muita coisa se passou: primeiro cai a religião, depois a religiosidade e, por fim, o transcendente, ou seja, aquilo que paira no ar e, por não sabermos explicar, damos-lhe o nome de deus. Decerto, é um processo moroso, que exige grandes transformações em quem o sofre. Perdem-se os pontos de referência, anos e anos de valores inculcados são dolorosamente lançados por terra, uma liberdade sombria e solitária assoma lentamente no horizonte, até invadir, por completo, o ser, como as primeiras rajadas de ar em um pulmão que se desabituara a respirar. E, então, outro longo processo se inicia, em busca de novos pontos de referência, outros valores – os quais podem ser os mesmos de antes, sem, contudo, a inconsciência de outrora – novas prisões. E este novo ser, a quem costuma-se designar pelo nome de ateu – mas que é muito mais (ou muito menos) do que não acreditar em deus – vai viver num mundo não de cegos, mas de pessoas que vêem demais.

***

Afirmar-se ateu numa sociedade enraigadamente religiosa tem status de profunda leviandade, quase um crime – ou crime inteiro, para religiosos extremados. É mais fácil aceitar que se mate em nome de deus, mas não que se viva sem ele. Talvez o maior dos dogmas, compartilhado pela imensa maioria das religiões ocidentais – falo, sobretudo, das que possuem certa ligação com o cristianismo (ou, melhor dizendo, com as quais este se conecta), pois fui criado nela – dizia: o dogma comum a grande maioria das seitas religiosas ocidentais talvez seja a de que a vida humana, e todas as vidas, pertencem a um ser superior, a quem devemos prestar contas num hipotético juízo final. Se matei ou morri, se roubei ou ofertei, tudo me será cobrado. E, quem sabe (sendo eu o assassino ou o ladrão), no derradeiro momento, no último arfar do peito, eu possa ativar minha fé neste ser e arrepender-me. Estarei salvo – salvo se meu arrependimento for verdadeiro. Desfrutaria da glória eterna, ao passo que o ateu, por não ter do que se arrepender – na hora da morte, digo – perde-se no fogo ou no mármore do inferno, junto daquele em quem acreditou tanto quanto em deus.

Não quero eu dizer que ladrões e assassinos não mereçam perdão eterno, até mesmo por que, sendo ateu, não acredito na salvação. O que coloco em questão é a forma como nós, seres humanos, hierarquizamos pecados e estabelecemos condenações. Isso em nome de deus. E nesta calçada da fama dos crimes a maior falta não é atentar contra a vida, concreta e palpável, de meu semelhante, mas contra a crença, abstrata e informe, do divino. Não esqueçamos o primeiríssimo mandamento: amarás a deus sobre todas as coisas. E amamos. Por isso é mais fácil aceitar jihads e cruzadas, fogueiras e torturas, atentados e invasões. Feita em nome de deus, qualquer ação ganha um quê de sagrada, na medida em que os argumentos que a sustentam são de outra ordem, outro mundo, embasados pelo senhor.

É verdade que, hoje, repreende-se quem mata em nome de deus. Este não quer isso de nós, é o que dizem. Contudo quer que aceitemos a si como verdade única, suprema, independente da seita seguida. Quer ser amado, sobre todas as coisas. Por que ele é o provedor de nossas vidas. E o único que poderá dar cabo delas.

É preciso pensar um pouco nesta natureza divina de ser o alfa e o ômega da vida humana. Quisesse eu ser um mero fazedor de polêmicas, diria que qualquer assassino, por mais que sua alma seja dada ao prazer de exterminar seres de sua espécie, só poderia fazê-lo com o consentimento de deus – o que me faz imaginar quase automaticamente um departamento no paraíso responsável pela emissão de concessões de assassinato, cheio de anjos trabalhando até a exaustão para dar conta dos pedidos. Não: deus não é culpado de todas as mortes. Se quiséssemos ainda manter seu poder de pôr fim à vida humana, teríamos que lhe dar o título de co-partícipe delas. Mas nem isso.

Não isento-o da culpa por conta da falácia do livre arbítrio – argumento assaz curioso, ainda que de pouca eficácia retórica, rebatido facilmente com a outra face da mesma moeda, bastaria dizer: quem foi que disse que queríamos ser livres? –. Deus é inocente porque não compete a si a responsabilidade de pôr termo às vidas humanas. Estas chegariam ao fim à revelia de sua vontade. Culpemos, sim, a natureza, a qual se vale de várias maneiras – dentre elas a mão humana – para dar cabo da existência de tudo quanto nela habita.

A natureza é culpada, sobretudo, pelas milhares de mortes em desastres naturais – aliás, este tem sido o principal papel que a natureza vem desempenhando, neste filme em que o homem é o diretor. Destas mortes deus nunca é culpado, antes é responsável por umas tantas vidas que se salvam. Ou seja, atribui-se a ele o milagre da vida que não se perdeu e à natura a tragédia pelas que se foram. Imaginemos como ficaria a face de deus se o ômega fosse de sua alçada: que justiça haveria em manter a vida de uns e ceifar a de muitos outros? Decerto que recorrer-se-ia rapidamente a outra falácia – a de que os desígnios de deus são inescrutáveis. Essa possui maior eficiência retórica, malgrado possa ser considerada um golpe baixo. Ora, é fácil esconder-se atrás de um “cala a boca que eu sei o que estou fazendo”, do que explicar-se diante de uma multidão em choro e desespero uníssono a clamar “por quê? por quê meu deus?”. Definitivamente, se detivesse nas mãos a foice derradeira, deus ficaria em maus lençóis.

Em outras palavras, se se quer manter a imagem de deus, ou melhor, se se quer acreditá-lo como uma figura do bem, deve-se livrá-lo da responsabilidade pela morte na Terra. Contudo, o alfa e o ômega são indissociáveis, como faces da mesma moeda, de modo que, se deus não for responsável pela morte, também não o é pela vida. Ademais, seria injusto com a natureza dar a deus as palmas pelo milagre da vida e a ela as vaias pela malvinda morte.

***

Fixemos-nos na seguinte afirmação, a princípio inquestionável: a vida é um milagre, o bem maior. Deus, provedor dela, é portanto o ser supremo a quem devemos prestar contas do milagre que nos foi confiado. Talvez devêssemos perguntar se esta dádiva a nós pertence ou, como o quis sugerir, é-nos somente emprestada. Indo por este caminho, poderíamos questionar, ainda, por que nos foi fiado tão maravilhoso milagre e o que devemos fazer com ele. Há quem vá dizer – e sempre é bom lembrar que falo de cristãos, para cristãos e como cristão, independente de ser ateu – que a vida que vivemos foi escolhida por nós antes de nascermos. Assim, qualquer percalço no decorrer dela não tem outro culpado senão nós mesmos. Outros, por seu turno, dizem que a vida nos foi dada por deus para que possamos adorá-lo e glorificá-lo. Seja a vida uma escolha para o contínuo evoluir da alma ou para a glorificação do senhor, não podemos ordenar um vita fiat humanae e criarmos a nós mesmos. Só deus pode fazê-lo, por que a vida pertence a ele, cabendo-lhe, então, responsabilidade parcial ou total pelo que com ela fizermos. Ainda quererão impor o livre-arbítrio para responsabilizar apenas o homem, ao que perguntaria: o homem também escolheu ter o livre-arbítrio?

O conceito do livre-arbítrio opera consoante a afirmação de que a vida é um milagre, pertence a deus, mas que podemos fazer o que bem entender dela. Mas se para mim ela não for um milagre, antes um fado pesado a carregar, ou apenas vida, sem metafísica, como deve ser a muitos outros animais? Meu livre-arbítrio permite-me não viver, ou, vivendo, matar-me sem nenhum pingo de culpa por atentar contra um bem que não me pertence, mas que foi dado à revelia de minha vontade? Por ser tão arraigado em nossa sociedade que viver é bom, esquecemo-nos de relativizar as coisas e achamos que todo ser humano deve aceitar isso como uma verdade absoluta e inquestionável. Os suicidas já têm lugar garantido no inferno, mesmo que o desapego pela suas vidas não seja culpa deles, mas do deus que queria ser adorado e glorificado. Ora, se o livre-arbítrio é do sujeito, e se ele tem uma existência não corpórea antes de assumir uma forma física, por que viver se o fim último seria atentar contra a própria vida? Para voltar numa próxima carregando mais um fado? Ou, se deus assim quis que o suicida viesse à luz, sem vidas passadas ou futuras, sabendo, o deus, pela sua onisciente cabeça, que aquele poria fim à própria vida, por que não lhe deu o livre arbítrio antes da existência, quando era ainda um pensamento na mente divina? A mim, dar vida a quem não quer viver parece-me coisa de deus egocêntrico, ou, palavra melhor, egoísta. Evidente que a imagem de deus-egoísta não é a melhor para o ser supremo. Portanto, assim como a morte não é de responsabilidade divina, a vida também não o é. Atribuir-lhe este ou aquele encargo é pôr em suas mãos a culpa por toda ação humana.

Nascimento e morte são os dois extremos da vida, sendo a morte a única certeza e, quem sabe?, o único sentido da existência. Nascemos para morrer, e aí já teríamos uma possível e não unívoca resposta para a filosófica e incômoda pergunta a assolar o espírito humano: por que estou vivo? Por que estou aqui? Deus surge indiretamente como outra resposta provável. Deus quis. Deus quis que eu nascesse em um país cristão e, portanto, educado segundo os valores cristãos. Minha vida devo a ele. Do mesmo modo, um jovenzinho nasceu na montanha mais longínqua de uma aldeia no Tibet, por que deus quis, e morrerá nela, sem nunca ter ouvido falar em Jesus Salvador, ou mesmo em deus criador, por que foi educado em uma filosofia que não prega a existência de uma entidade suprema a criar e destruir vidas. Porventura até poderia ter tido um diáfano contato com um cristão que levou a cabo a ordem da pregação do evangelho; todavia, sua história, sua cultura, seus valores não o permitem dar crédito ao reto cristão pregador, da mesma forma que eu não aceito nenhuma das quatro verdades absolutas pregadas por qualquer dalai lama. Em outros termos: ou deus é injusto por não dar condições iguais a todos para que cheguem, ou não, à sua morada, ou é pretensão cristã achar-se verdade inquestionável e assente em toda e qualquer parte do planeta – quem sabe, do universo.

***

Quero, na verdade, chamar a atenção para a construção, feita durante séculos pela racionalidade humana, da imagem divina. Esta é, no menos, ambígua. Um deus que ama, mas que pede sacrifícios a torto e a direito – sempre de sangue. Que hasteia bandeiras de guerra – e vence, independente do lado vitorioso. Que cobra exclusividade, condenando uns tantos inocentes, cuja única falta foi não ter nascido em berço cristão, ao inferno. Mas a maior contradição se dá quando contrastatado com a figura de seu hipotético filho, Jesus. Lembremos uma vez mais o primeiro mandamento, e o que ensina este a que chamaram Messias: amai a teu próximo como a ti mesmo. É fato que ambas as inscrições não entram em conflito; entretanto, pensar uma trindade em que uma terça parte cobra atenção total enquanto as outras, humildemente, incitam o amor fraterno, sendo todas as partes iguais (mas ao mesmo tempo diferentes) é bastante complicado.

Pensemos nessa existência trina: aquilo a que os católicos chamam de dogma da santíssima trindade traduz com perfeição essa essência primordial no mínimo ambígua que é deus. Pai, filho e espírito santo são um, o mesmo, e diferentes. O primeiro pedia sacrifícios, como os deuses do panteão grego; o segundo, talvez pelo seu caráter revolucionário (permito-me a anacronia do termo em se tratando da figura de Jesus, mas acho que ela é válida), contesta em muitos aspectos as decisões do pai, ainda que prefira não entrar em conflito com ele; o terceiro, por fim, é o espírito colúmbeo que paira sobre o ar – e dirá o poeta Alberto Caeiro: “a única pomba feia do mundo/ porque não era do mundo nem era pomba” –, confortando os mortais, abrandando-lhes as dores: é a fatia de deus que se permite entrar em contato com o ser humano. Ora, qualquer leigo verá que são personalidades infinitamente distintas, até contraditórias, em coexistência perfeitamente harmônica na mente humana. E não questionamos.

Até seria válido aplicar aqui o conceito de “duplipensar” utilizado por George Orwell em seu 1984: ao pensar algo, penso imediatamente o oposto do que pensei, e convivo em perfeita paz com os dois pensamentos, ativando um e outro de acordo com o momento. Contudo, não é preciso recorrer à literatura para explicar algo que é passível de entendimento a partir da história. O cristianismo incorpora e ressignifica valores do judaísmo, que são notadamente diferentes dos preceitos cristãos. O que muda com o advento desta nova religião é a personalidade de deus pai, fazendo-nos conviver com duas idéias diametralmente opostas: o ser severo de antes, que pede o filho de Abraão em sacrifício dá lugar ao pai que sacrifica o próprio filho para salvar a humanidade.

***

E assim voltamos ao ponto em que estávamos: deus ser responsável pela vida e morte na Terra. Só acreditamos nesta possibilidade porque crescemos em contato com o caráter paradoxal do ser superior. E temos consciência disso, tanto é que tentamos aliviar-lhe a culpa – por meio do argumento do livre arbítrio, ou da inescrutabilidade ou (incluo-o agora) do tríptico poder divino: sua onisciência, onipresença e onipotência. O tríptico poder, erigido por muitos religiosos como uma espécie de Grande Explicação da natureza divina, é tão contraditório quanto a figura a quem ele está relacionado. Horas há em que deus decide (o apocalipse já é um fato que só devemos esperar), outras em que eu escolho: posso livrar-me do apocalipse consoante a minha conduta ser “direita”. E se ela não o for, o livre-arbítrio é meu, ainda que deus já tenha ciência de meus atos (independente do livre-arbítrio), e toda força para proibi-los (se a minha decisão prejudicar a um terceiro). É inconsistente pensar, pelo menos para mim, que eu sou livre para matar, mas a vítima não é livre para não morrer. Minha vontade matou um homem, porém a vontade dele não o fez continuar vivendo. Mas os caminhos de deus são inescrutáveis...

A onisciência divina e o livre-arbítrio humano são dois conceitos que se contradizem. Se deus tudo sabe, porque está em toda a parte, é inconcebível que ele proceda de modo a fazer valer o livre-arbítrio de uns em detrimento de outros. Se todos são livres para fazer o que bem entender, quem decide qual “bem-entender” deve prevalecer? Além disso, será que este escolher é de fato tão livre quanto acreditamos ser? Os apóstolos escolheram, por livre vontade, seguir a Jesus. Outros tantos faziam e fizeram o mesmo. Por que deus escolheu a uns e não a outros, ou todos? Maria escolheu fazer-se em si segundo a vontade divina, o que muitas mulheres fariam, se não fossem preteridas pelo criador. Se eu escolho ser um assassino, é livre-arbítrio; se eu escolho fazer milagres, e não faço porque não consigo, é o quê?

Diriam os religiosos que deus se deixa operar quando se está aberto a ele. Suponho que para muitos estar aberto significa usar o livre-arbítrio para fazer o que deus quer, ainda que não saibamos exatamente seu desejo. Mas o livre-arbítrio deixa de sê-lo na hora mesma em que sou coagido a fazer a vontade de outrem, no caso, a de deus. Em outras palavras: não existe livre-arbítrio se o sistema pressupõe que, ou eu faço o que deus manda ou sou condenado. Não se trata de arcar com as consequências dos meus atos, como dirão automaticamente muitos, porque as consequências já estão preestipuladas antes mesmo de eu os cometer. Que liberdade é essa que já prescreve as implicações de minhas ações?

Atribuímos a deus valores que foram construídos pelas sociedades humanas, como se viessem dele. É a perpétua relação criador-criatura, a sempiterna confusão franksteinriana. E há nisso um grande problema, que muitos ignoram ou preferem ignorar. Volto ao que discuti anteriormente, referente ao alfa e ômega: supondo que deus seja responsável por dar vida às coisas, por criá-las e, num ímpeto de inspiração tenha feito uma criatura tão perfeita como é o ser humano, dizem que à sua imagem e semelhança, então ele também seria co-autor das obras humanas – talvez o barro de que aquele foi criado tenha captado um pouco da capacidade criadora divina. Neste caso, a co-autoria também é indesejável para o retrato que se quer de deus: criam-se as possibilidades de vida, mas muito mais as possibilidades de morte – estas, sim, as que mais marcam a nossa história. Então seria o caso de pensar: o caráter bélico do ser humano já estava no barro, ou também foi de alguma forma reflexo da imagem que serviu de molde para o homem? É fato que a deus associamos sempre as virtudes, e a nós mesmos, ou ao diabo, que é bode, e expiatório, os vícios. Mas, sendo deus o princípio, de onde vem o "mal", senão da própria origem do "bem"?

***

Haverá quem diga que estou sendo superficial, e não estará mentindo. Contudo, o que estou analisando é justamente a superficialidade das coisas. Muitos questionam-me por ser ateu, e pouco se dão à teia de contradições que repetem tão exaustivamente sem pensar, como se tais argumentos fossem inquestionáveis. Ora, uma análise superficial, facilmente questionável como a minha, coloca em xeque muitos dos preceitos cristãos reproduzidos por fiéis que não sabem do que falam, programados apenas a repetir o que ouviram. Não obstante, os fiéis preferem-me perguntar qual a minha explicação para a origem do universo, afirmam que todo ateu acredita em alguma coisa – ignorando que a designação, injusta, significa justamente a não-crença –, que está na bíblia na bíblia na bíblia, e sequer enxergam o quanto a imagem que construíram do deus que defendem é obtusa. Não se questionam, em momento algum. Neste caso, a pergunta que gostaria de colocar, dentre outras tantas, é a seguinte: e se tivéssemos ouvido, desde os primórdios da civilização, que o Universo surgiu de uma Grande Explosão, e que Dela gerou todas as coisas que existem? E, posteriormente, alguém viesse para falar que isso é lorota, que o Universo foi criado por uma entidade superior, que governa a tudo e a todos? Acreditaríamos nessa pessoa? É difícil dizer que sim, uma vez que a nossa história é a dela e não a hipotética. E é exatamente isso que fazemos com todas as explicações, dadas por diferentes povos, para a origem do Universo.

O problema não está nas crenças, mas na edificação destas enquanto verdades absolutas. Há quem convive com a ideia de deus vinculada a uma seita ou crença existente. Há quem prefere dizer que deus é a força motora do Universo. Há quem não convive com a ideia de deus. O que não dá para aceitar é que estes últimos não sejam compreendidos como são os outros. Mesmo para aqueles que desacreditam das religiões, salvaguardando, porém, a religiosidade, insistirão na idéia de deus, e me dirão que a natureza, personificada mais acima, ou o Big Bang, implicitamente citado, são manifestações de deus, e que coisas tão perfeitas como tudo quanto há no universo não poderiam ser criadas de uma simples explosão, Ora, se deus é uma explosão, não há por que chamá-la deus; se é natureza, o melhor nome é esta palavra tão feminina e tão condizente com a idéia de provimento da vida. E se há uma vontade que guia as coisas do universo – e o ateu jamais poderá afirmar com convicção que não há, como nenhum religioso jamais poderá afirmar, com a mesma convicção, de que existe – seu nome pode ser apenas vontade, e não deus, que já tem uns tantos sentidos correntes por aí.

Acreditar em deus é necessário, confere sentido à vida daqueles que exasperam-se diante da esfinge inquiridora, a perguntar por que estamos vivos. Porém, para mim, o sentido da vida está em não responder à espinhosa questão, mas deixá-la em aberto, sujeita a quantas especulações forem possíveis e imagináveis. Àqueles que, como Édipo, respondem ao enigma, resta o consolo e conforto, malgrado sejam eternamente perseguidos pela sombra de uma ignorância acerca da própria identidade, porque contentaram-se com a primeira resposta. Para quem fica à porta, sob os olhos da esfinge, sobra o eterno desespero e a indefinição; graças a isso, o mundo sempre será cheio de possibilidades, e não apenas o deus e o diabo, bem e o mal, o certo e o errado, o esquerdo e o direito.

A mim, o que importa não são estes extremos, mas os matizes que se estendem de uma ponta a outra deles.